Cão de apartamento, por Gabhishak
Esse texto foi escrito com todo o cuidado e carinho por um autor convidado. O conteúdo é da sua responsabilidade, não refletindo, necessariamente, a opinião do WeMystic Brasil.
Esse é um fenômeno que pode revelar muito sobre nós mesmos.
Há quem diga que o universo é tal qual o organismo humano, nele incluído corpo e mente, nela igualmente inseridos os aspectos emocionais, psicológicos, emoções, sentimentos, estados de humor; o pensamento e seus desmembramentos.
Todos eles, à luz dos apontamentos dos mestres espirituais, são fenômenos passíveis de observação.
Os cães são um belo exemplo.
Observá-los e observar a relação que travamos com eles.
Já percebeste como eles necessitam pouco para viver?
Já notaste os cães dos moradores de rua? Sem teto, sem endereço; comem de vez em quando e, apesar disso, estão sempre equilibrados, com energia e vigor.
Eles caminham o dia todo ao lado de seus donos e não reclamam.
Na maioria das vezes são cães sem linhagem.
Eles não possuem ‘pedigree’. Mas estão intensamente vivos! Vivos e relaxados, ao mesmo tempo.
Não precisam mais do que algum exercício físico, um pouquinho de atenção e, se derem sorte, um pedaço de osso eventualmente sacado da lixeira.
São cães felizes, sobretudo.
Bem diferente dos ‘pets’ de apartamento. Invariavelmente aflitos, estressados; quando saem de casa arrastam seus donos pelas calçadas como quem quer fugir para longe, bem longe.
Não se engane; muitos fugiriam se pudessem.
Os ‘pets’ urbanos, por assim dizer, tem inclusive somatizado muitas das enfermidades humanas.
Modernamente, há cachorro com diabetes e hipertensão.
Não é piada e há quem veja com naturalidade.
Não é natural. O animal, submetido a uma vida mesquinha, trancado em 40 metros quadrados de concreto no Leblon ou em Moema sofre com isso.
Mas nós não nos importamos.
Achamos que chegar em casa, obviamente cansados ao final do expediente, dar duas voltas no quarteirão e servir um pote de Royal Canin é o suficiente. Não estaríamos unicamente satisfazendo nossos luxos, nossa vaidade? Ou ainda, alguma necessidade de companhia externa, já que a nossa própria é algo insuportável?
Me desculpe por ser tão enfático. Talvez você não concorde, não se sinta à vontade lendo essas linhas.
Talvez você tenha seu pet em casa. Se é assim, reflita um pouquinho sobre o que estou dizendo.
E não pense que estou só apontando o dedo.
Não costumo escrever embasado no ‘ouvi dizer’. Ou apenas naquilo que li em um livro.
O que lhe trago é um pedaço da minha própria experiência. É o resultado do que observo em mim, no ambiente em que estou.
Eu também tenho meu ‘pet’.
Pausa.
Note o pronome possessivo ‘meu’, trazendo a ideia de objeto, algo que possuo, sou dono, é minha propriedade, eu mando…e por aí vai.
Se os cães de rua são mais felizes que os nossos, seríamos nós pessoas mais felizes que aquelas que andam mendigando pelas ruas com seus amigos fieis ao lado?
É algo a ser questionado, sem dúvida.
Na minha percepção os cães tem sido usados e abusados pelos humanos.
É também um retrato da maneira que temos tratado o planeta, a natureza.
Não é amor. Em muitos casos, tem sido apenas uma distração que supre temporariamente nosso medo do silêncio. Nossa repulsa em estar só. Estar só significaria ter de olhar para aquilo que costumeiramente jogamos debaixo do tapete.
Não queremos ficar sós. Precisamos de companhia — do outro.
Esse outro viria para suprir algo que falta em nós, porque não estamos plenos, completos.
É por isso que temos que ter um, dois ou três pets.
Eles são mais uma das nossas fugas.
Fuga de nós mesmos. Aí nos apegamos a qualquer objeto que possibilite esse escapismo.
E nisso, transferimos a esses pobres animais nossas amarguras, ansiedades, frustrações, os problemas, todo o dissabor do dia a dia robótico e interminável.
Mas é claro, temos que cuidar dos nossos cães. Eles dão trabalho, não é mesmo?
E nisso, surge mais atividade, mais obrigações, mais movimento — esses pobres cães significam tão somente algo mais que ‘temos de fazer’?
Fico triste ao ver a relação patológica que há entre nós e nossos cães.
Tenho procurado observar quanto disso é apego, quanto disso é mais uma ‘trampa’ que me afasta daquilo que sou e quanto é amor de verdade.
O ego do ser humano é cheio de trapaças. Ele usa de todas as maneiras possíveis para se manter vivo.
Nós, desatentos que estamos, aceitamos.
Atenção é o segredo. Olhar com olhos vazios é a técnica.
Experimentemos.
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