A criança que habita em nós
“Em todo adulto espreita uma criança – uma criança eterna, algo que está sempre vindo a ser, que nunca está completo e que solicita cuidado, atenção e educação incessantes. Essa é a parte da personalidade humana que quer desenvolver-se e tornar-se completa”
Essa frase de Carl Gustav Jung, psiquiatra e psicoterapeuta suíço muito famoso é perfeita para introduzirmos o conceito de criança interior e sua profunda importância em nossa jornada espiritual.
Ele próprio decidiu resgatar suas recordações infantis, quando percebeu que muito de suas angústias enquanto adulto poderiam ter a origem nas experiências de criança.
Sabemos, por própria experiência, que os eventos que vivemos na infância não são todos mágicos e positivos, sendo que muitos deles podem ser inclusive traumáticos, com potencial de gerar transtornos na vida adulta e impedir nosso desenvolvimento. Carregamos conosco a mágica e a alegria quase que incondicional do ser criança, porém, guardamos também dolorosas lembranças de uma carga afetiva intensa que têm uma grande influência em nossas vidas adultas, gerando sofrimento e uma distorção da realidade em função de nossos complexos.
Crianças em algum momento se sentem feridas e agredidas pelos acontecimentos e circunstâncias, que formam nelas feridas profundas na alma e na psique, ou, infelizmente, até mesmo no corpo. Quando o amor não foi sentido de forma plena, o suporte esperado não chegou da forma ideal, a sensação de abandono foi sentida ou uma falta de segurança percebida, são gerados sentimentos de inferioridade, insignificância, incapacidade, não merecimento e desamor, que vão acompanhar aquela criança até a vida adulta e permear as decisões que ela toma e como se sente perante sua existência.
Essa personalidade em formação começa a criar estratégias de defesa que são incorporadas na psique em forma de crenças, por vezes de maneira inconsciente, ou seja, a pessoa nem sabe como adquiriu aquela crença e nem muito menos tem a consciência de que esse processo está gerando dor ou bloqueando determinado aspecto da vida. Por exemplo, um ambiente familiar que oferece uma criação muito rígida, pode induzir a criança a tornar-se um adulto muito crítico consigo mesmo. Já uma criança que sofreu abusos verbais e psicológicos tende a ser um adulto que busca sua proteção exacerbando sua força ou sua insensibilidade, criando uma falsa armadura para se proteger.
Assim, compreendemos então que traumas e experiências negativas vividas na infância causam o bloqueio da fluidez da vida e muito sofrimento, suspendendo a evolução daquele espírito até que ele encare de frente esses traumas.
Mas o que é, então, a criança interior?
Nossa vida tem várias fases, e, assim como ela, temos um eu correspondente à cada etapa, sendo que esse conjunto de experiências é o que chamamos de vida. Como a vivência infantil é uma das fases mais importantes, ela permanece em nós seja na alegria, na diversão com pequenas coisas, ou também nos traumas e bloqueios que ela carrega. Nossa criança permanece ativa em nós até o dia de nossa morte. O reencontro com nossa criança interior é, também, uma oportunidade para que possamos nos inspirar nas características deste arquétipo como sinceridade, pureza, autenticidade, liberdade para se divertir e espírito de aventura, trazendo uma riqueza de aprendizado incalculável.
Reencontrar a criança e acolher a sua dor, oferecendo à ela o amor que ela necessita é um caminho que somente nós podemos percorrer para encontrar nossa cura e poder ressignificar as experiências traumáticas e desagradáveis. Quando enfim a “descobrimos”, entendemos o real significado do perdão e do amor incondicional, pois é o perdão e aceitação que deixam o nosso espírito livre para evoluirmos no amor.
Nossa criança interior é, se dúvida, a descoberta de nós mesmos.
Quais os sintomas de desconexão com nossa criança interior?
Nem sempre sabemos onde dói a nossa dor. Nem todos os traumas passam pelo processo de racionalização e muitos estão “escondidos” dentro de nós. Ali está sua criança, também escondida, ferida, com medo. É como se ela estivesse congelada nos momentos de sofrimento, esperando um socorro que nunca chega. Quando choramos, quem chora é a nossa criança, abandonada, ferida, magoada. Quando sofremos, é essa parte de nós que se aflige.
Os traumas fazem com que as pessoas girem em torno deles, buscando aceitação, amor, reconhecimento, nos afastando daquilo que realmente somos ou estamos destinados a ser, nos trazendo consequências dolorosas e, muitas vezes, até doenças. Isso somado à incapacidade de expressarmos nossos sentimentos faz com que percamos o contato com nossa criança e sejamos transformados naquilo que imaginamos que os outros queriam que nós fôssemos e não no que devemos, de fato, nos tornar. Quando experimentamos sensações intensas de abandono, carência, vazio, solidão, necessidade de aprovação constante, reconhecimento, dependência financeira ou emocional, é provável que estejamos negligenciando nossa criança interior e agindo hipnotizados por nossos traumas e necessidade de aprovação, buscando no outro uma completude para dissipar um vazio que nunca tem fim mas que não pode ser preenchido por ninguém além de nós mesmos. Essa falta de conexão emerge, especialmente, em momentos de dor, perda ou rejeição, tão comuns no decorrer de nossas vidas. O resultado é, então, desastroso, pois ninguém pode nos dar o que buscamos e só alimentamos ainda mais nosso sofrimento quando buscamos no outro o que está e sempre esteve dentro de nós.
Aceitar suas moedas: um segredo para viver bem
Um conto emocionante e muito utilizado em terapias de cura da criança interior é um trecho do livro do psicólogo Joan Garriga Bacardi, que fala sobre os princípios que regem as nossas relações desde a infância até os últimos momentos de nossa vida. É um livro curto, porém de essencial leitura; em linguagem muito simples e tocante, o conto consegue acessar nossa criança e nos fazer refletir sobre aceitação e perdão, nos mostrando a importância de aceitarmos as nossas “moedas”, sejam elas quais forem, como diz o autor, num processo de reconciliação profunda com a vida e com nós mesmos.
Onde estão as Moedas?
As Chaves do vínculo entre pais e filhos
Numa noite qualquer, uma pessoa, da qual não sabemos se é um homem ou uma mulher, teve um sonho, um sonho com os pais. Neste sonho seus pais apareciam e lhe davam algumas moedas, não sabemos quantas eram, se uma dúzia ou uma centena, nem de que metal eram feitas, se eram de ouro, de prata, de cobre, de ferro ou mesmo de argila. O sonhador as recebia de bom grado porque eram as moedas que seus pais lhe davam, eram as exatas que necessitava e merecia para levar sua vida. Satisfeito, agradeceu aos pais pelas moedas recebidas. E o sonhador termina a noite de sono tranqüilo, descansado e pleno. Ao amanhecer, desperta bem disposto e resoluto em ir à casa dos pais para comentar o sonho e agradecer as moedas recebidas. Indo até os pais, comenta o sonho e agradece as moedas recebidas, em profunda gratidão. Seus pais, vendo a atitude do filho, sentem-se grandes, ainda maiores e mais bondosos do que haviam sido e orgulhosos do filho. Dizem-lhe então:
– Estas moedas são para você, use-as como quiser e não precisa devolvê-las, são nossa herança para você.
Este filho segue seu caminho satisfeito e pleno, capaz de enfrentar e vencer qualquer desafio, com a certeza de haver recebido as exatas moedas que necessitava e merecia de seus pais, suficientes para empreender sua caminhada. De tempos em tempos volta-se para trás, em direção à casa dos pais, sentindo-se revigorado e pleno para seguir e realizar sua vida.
Em outra noite qualquer, um outro sonhador tem um sonho parecido. Neste sonho, o sonhador recebe dos seus pais algumas moedas, que não sabemos se uma dúzia, uma centena ou apenas umas tantas, nem de que metal eram feitas, se de ouro, de prata, de cobre, de ferro ou mesmo de argila. Mas este sonhador não aceita as moedas dos pais.
– Estas não são as moedas que necessito, preciso e mereço, por isto não as tomo e deixo-as com vocês. Se eu as tomasse, minha vida se tornaria pesada e, portanto, quero que fiquem com elas.
E este sonhador segue pela noite intranqüilo, com o sono entrecortado e desperta muito cedo, cansado e ansioso por ir até a casa dos pais, contar-lhes a respeito do sonho. Lá chegando, diz aos pais sobre o sonho e que aquelas moedas não lhe interessam, que aquilo que eles tinham para ele não eram as moedas que ele necessita e merece, deixando-as portanto, com eles. Os pais ouvindo isto, tornam-se ainda menores, humilhados, como costuma acontecer quando um filho não toma seus pais, seus ensinamentos e sua herança, tal como foi; e retiram-se para seu quarto. E este sonhador, tomado de uma estranha força, sente-se fortalecido e vingado, havendo acertado as contas com seus pais e sai para a vida decidido a encontrar suas moedas, as que necessita e merece. Com alguém elas devem estar.
E tomado por esta força, vai pela vida em busca de uma parceira, procurando pelas moedas que necessita e crê poderem estar com ela. Às vezes tem a sorte de encontrar alguém e mais sorte ainda desta relação durar algum tempo. Quando isto ocorre, com o passar do tempo o sonhador percebe que sua parceira não tem as moedas que necessita e merece, e o relacionamento perde todo seu encanto, ficando para trás. E o sonhador segue em busca de outra pessoa que talvez, desta vez, tenha as suas moedas. E de relacionamento em relacionamento, segue em busca de suas moedas, mas nenhum deles tem as moedas que necessita e merece. Outras vezes, o sonhador tem um filho e cria a forte expectativa de que este filho terá as moedas que necessita e merece, e o aguarda ansioso e cheio de esperanças. Mas a vida é como é; os filhos crescem e seguem seus próprios caminhos, e tampouco eles têm as moedas que o pai ou a mãe procuram.
E nesta busca incessante, o tempo vai passando até que o desespero toma conta: onde estarão minhas moedas, justo as que necessito e mereço para levar minha vida?
Então, algumas vezes, vão em busca de um terapeuta, na certeza de que eles sim saberão das moedas. Mas há dois tipos de terapeutas: um que acredita que tem as moedas que seu cliente procura; e outro que sabe que não as tem, mas está disposto a ajudá-lo a procurá-las.
Quando tem a sorte ou a sabedoria de encontrar este segundo tipo de terapeuta, dá-se início a um processo de auto-consciência e aprendizado, onde o sonhador vai percebendo aspectos antes ignorados, apropriando-se de sua própria vida, pouco a pouco. Até que num belo dia o terapeuta se dá conta de que o sonhador já está pronto para saber onde estão suas moedas. E neste mesmo dia, não apenas por coincidência, o sonhador vem para a terapia e diz:
– Eu já sei onde estão as moedas. Ainda estão com os meus pais.
E resoluto, empreende o retorno à casa dos pais, em busca das justas moedas que necessita e merece. Chegando à casa dos pais, arrependido e amadurecido, toma-os por inteiro, aceitando feliz e de bom grado as moedas que eles têm para si, exatamente as que precisa, necessita e merece para levar sua vida em plenitude. E seus pais, reconhecidos e aceitos inteiramente pelo filho, tornam-se ainda maiores, mais dignos e responsáveis, podendo ser ainda mais generosos. E assim o sonhador encontra seus caminhos, com a fortaleza da herança dos pais: agradecendo a vida recebida, dizendo sim a tudo tal como foi, libertando-se de todas as mágoas, deixando as responsabilidades com quem de direito; tomando sua própria vida em suas mãos, com a benção de seus pais, para que, agora possa buscar sua felicidade.
Em outro momento foi até seu filho e disse:
– Você pode aceitar todas as minhas moedas, porque eu sou uma pessoa rica e completa.
Agora já peguei as minhas de meus pais.
Então o filho se tranquilizou, se fez pequeno em respeito a ele e se sentiu livre para seguir
seu próprio caminho e aceitar suas próprias moedas.
A cura da criança interior: terapias que tratam nossa criança
O método mais eficaz para promover a conexão com a criança interior é, sem dúvida, a constelação familiar. Essa terapia alternativa desenvolvida por Bert Hellinger, um psicoterapeuta alemão, cria um modelo de sistema familiar para revelar e transformar padrões ocultos que são difíceis de entender e mudar.
Porém, existem outras alternativas como regressão intra-uterina e meditações guiadas para focadas no reencontro com a nossa criança. Além disso, exercitar a aceitação, o perdão, a imaginação e criatividade também são ótimas maneiras de resgatarmos nossa criança, trabalhar e nos colocar em contato com ela.
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