Tradições populares e o encantamento do mundo: entenda porque o Dia do Saci não faz tanto sucesso quanto o Halloween
Esse texto foi escrito com todo o cuidado e carinho por um autor convidado. O conteúdo é da sua responsabilidade, não refletindo, necessariamente, a opinião do WeMystic Brasil.
Você já ouviu falar no Dia do Saci? A data, ainda pouco conhecida, já existe há dezoito anos no Brasil. Em 2003, o Projeto de Lei nº 2.479-A estabeleceu o Dia do Saci no dia 31 de outubro, mesma data do Halloween, como uma tentativa de fortalecer as tradições brasileiras em face às estrangeiras que se inserem no país cada vez mais com a globalização. Mas será que a iniciativa teve o efeito esperado? E afinal de contas, por que o Halloween ficou tão conhecido no Brasil, mesmo não tendo nenhuma relação com as tradições nacionais?
De acordo com a professora aposentada da UEL (Universidade Estadual de Londrina) Raimunda Batista, que pesquisa sobre cultura popular, essa importação acontece por influência da mídia na globalização. “Essa história do Halloween não tem nada a ver com a cultura brasileira. Eu acho que um pouco disso vem do nosso ‘complexo de vira-lata’, parece que temos realmente um complexo de inferioridade muito feroz para copiarmos coisas que vem do estrangeiro”, avalia.
Além da influência da mídia e dessa valorização da cultura estrangeira em detrimento da nacional, o professor e pesquisador do Departamento de História da UEL Marco Antônio Soares destaca também outra influência muito forte: o comércio. “A sociedade moderna é essencialmente materialista, é muito mais preocupada e ligada ao consumo do que às tradições”, comenta. E para entender melhor como as decorações de abóboras e fantasias de fantasmas chegam a lojas brasileiras, é importante investigar as origens desse fenômeno.
O que é o Halloween?
De acordo com o site do History Channel, o Halloween é uma data derivada da comemoração do Samhain (que se pronuncia como “Sah-win”), uma palavra gaélica (da Grã-Bretanha e Irlanda) que nomeia um festival religioso de origem celta comemorado desde a Antiguidade. Entre os dias 31 de outubro e 1 de novembro, que correspondem no Hemisfério Norte ao equinócio entre outono e inverno, os celtas celebravam o fim da colheita e acreditavam ser um momento em que a comunhão com os deuses era facilitada. Além disso, acreditavam que criaturas mitológicas visitariam os humanos nessa data, e se vestiam de animais ou de monstros para que as fadas não os sequestrassem.
Ao longo dos séculos, conforme o Cristianismo se espalhou pela Europa, a data foi adaptada à religião e ganhou o nome de Dia de Todas as Almas ou de Todos os Santos (All Hallows’ Eve), que mais tarde passou a ser pronunciada como Halloween. Apesar do novo significado cristão, muitos dos elementos antigos da tradição pagã permaneceram. Nos séculos XIX e XX, as ondas imigratórias de irlandeses para a América do Norte ajudaram a popularizar a data nos Estados Unidos, onde até hoje é retratada em filmes e em demais produtos culturais que, com a globalização e a mídia, passam a ser conhecidos também pelo Brasil.
Atualmente, a data ainda é celebrada por praticantes de bruxaria. O jornalista e pesquisador no Mestrado de Comunicação da UEL Cristiano Rantin, que é praticante da Wicca (bruxaria moderna), conta que existem grandes diferenças na forma como o dia é celebrado no Brasil. “Aqui nós temos o que chamamos de Roda do Ano, que são os oito Sabbats, oito rituais, em que alguns são sobre as trocas da natureza, de estações, e os que acontecem no meio são mais voltados à questão religiosa, juntando natureza e religiosidade”, explica.
“No Hemisfério Norte tem todos esses elementos da abóbora, das velas, dos espíritos, é relacionado ao Samhain, que é um Sabbat dedicado aos mortos, numa data em que existe essa possibilidade de comungar com os espíritos dos que já se foram”, descreve. “No meu caso, eu prefiro comemorar as tradições do Hemisfério Sul, e aqui estamos na primavera, não no outono. Então, comemoramos a vida, ao invés da morte. No dia 31 temos o Ritual de Beltane, que é um Festival da Fertilidade, do fogo, da vida, do sexo. E é muito engraçado esse contraste”, relata.
A crença é que esta seja uma época em que há grandes potencialidades de renovação e criação. “Aqui a natureza está verdejante e fértil, estamos vendo as plantas voltando com muita vida depois do inverno. Também na sua vida profissional, pessoal, nos seus relacionamentos, você sente esse potencial. É um momento para nós muito intenso e ‘quente’, por assim dizer”, conta.
Dia do Saci
“O dia do Saci não ficou nem um pouco conhecido. Se você falar do Saci, muitas crianças não vão conhecer nem a lenda, que é maravilhosa”, diz Raimunda Batista. “O Dia do Saci não tem absolutamente nenhuma representatividade como substituto do Halloween”, afirma. A professora aposentada da UEL, que pesquisa cultura popular, acredita que um dos principais motivos para o Dia do Saci não ter atingido seus objetivos é o fenômeno conhecido como ‘complexo de vira-lata’.
“Infelizmente vemos muito isso, principalmente na classe média. O dia do Saci realmente não vingou, eu diria, porque é uma fabricação nossa, e aqui o que nós fabricamos não vale muito não, é incrível isso. E dificilmente vai vingar. É chato dizer isso, mas nós somos muito colonizados ainda. Pensamos muito com a cabeça de fora, norte-americana”, avalia. Ela destaca o quanto as lendas são importantes na formação cultural e do imaginário nacional. “Elas influenciam narrativas posteriores, as narrativas eruditas, por exemplo”, comenta. “A lenda tem um significado super importante, a oralidade, aquilo que vai sendo passado, e que perdemos”.
O professor Marco Antônio Soares, que pesquisa a influência da globalização em comunidades no processo de contação de histórias, fala sobre as origens do Saci. “As tradições populares brasileiras nascem do encontro das populações nativas com a população escravizada e a população branca europeia. De certa forma, juntam esses três elementos para tratar do encantamento do mundo”, diz. “Boa parte dessas entidades [presentes nas tradições do folclore brasileiro] já eram parte da visão de mundo indígena, que ficou mais complexa com a presença dos negros no Brasil e com o catolicismo português”.
Soares conta que essas narrativas carregam as visões de mundo dos povos que as criaram, e que servem para influenciar os valores e identificação. “Primeiro temos que questionar o Dia do Saci, que é uma reação a uma demanda que não é nossa, sendo que nós temos desde os anos 1960 o Dia Nacional do Folclore, comemorado em agosto, que depois se tornou o mês nacional do folclore”, explica. O professor acha desnecessário o Dia do Saci, uma vez que a ideia é de se contrapor a uma data que não é brasileira. “Essas tradições populares que estão na cultura norte-americana não tem relação conosco, não tem essa relação cultural como temos com as nossas entidades, os nossos seres mitológicos e folclóricos que dão conta da nossa mentalidade, da nossa visão de mundo. Já essas tradições inventadas, importadas, pouco significam”.
Um exemplo que o professor dá dessa não-identificação é que o Halloween só é lembrado no Brasil no mês de outubro, ao passo que a cultura relacionada ao folclore brasileiro é presente o ano todo. Ele cita a série da Netflix Cidade Invisível, que mostra entidades tradicionais do Brasil. “A música brasileira, o nosso cinema, as linguagens televisivas tentam, em diversos momentos, trazer de volta esses valores. E, paradoxalmente, a série fez um grande sucesso, e colocou a moçada da cidade a discutir Cuca, Curupira, Saci, o que é muito importante”.
“Uma das faces mais visíveis da modernidade é justamente o desencantamento do mundo, a desmitologização do mundo”, ressalta o professor. Porém, ao permanecer em produções da mídia, é possível preservar esses elementos culturais fundantes. “É preciso ensinar, para fomentar, incentivar o olhar para esses nossos elementares, que são forças da natureza às quais atribuímos uma forma, uma figuração, para que elas façam parte do nosso cotidiano”.
Raimunda Batista, apesar de também não achar que o Dia do Saci tenha funcionado, reforça a importância de essas tradições serem ensinadas nas escolas. “Porque você dá uma informação para as crianças e elas passam para os pais, por isso acho que isso precisa começar na escola, na creche”, explica. “O Saci é uma figura muito malandra, muito engraçada, que fazia coisas aparentemente ruins, mas que na verdade eram boas. Se você buscar as histórias do Saci, você vai ver como ele é divertido, é um personagem bem brasileiro, que merecia ser resgatado”.
As bruxas e o imaginário popular
Também conhecido no Brasil como Dia das Bruxas, o Halloween traz à tona uma questão nada inédita: o preconceito que ainda existe com relação a bruxas. O jornalista e pesquisador da UEL Cristiano Rantin, que começou a praticar bruxaria moderna aos 12 anos, desenvolve uma pesquisa sobre os estereótipos relacionados a bruxas na sociedade. “Eu acredito que nós só conseguimos mudar algo que foi estabelecido, se falarmos sobre isso”, avalia.
No TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), Rantin pesquisou sobre o caso da bruxa do Guarujá. Em 2014, a dona de casa Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, foi assassinada num linchamento público por dezenas de moradores de Guarujá, no litoral de São Paulo, após um boato ter sido espalhado nas redes sociais de que ela sequestrava crianças para praticar rituais de magia. Após investigação, foi constatado que ela sequer era praticante de feitiçaria.
Rantin explica que a demonização da figura da bruxa se potencializou na Europa a partir da ascensão do Cristianismo. “Temos registros de praticantes de magia desde o Egito Antigo, então há muito tempo temos essa relação entre a sociedade e a magia. Mas na Europa, a partir da ascensão da Igreja Católica, começamos a ver praticantes de magia sendo demonizados, sendo colocados como inimigos da Igreja”, afirma.
“Quando chegamos nos séculos XVI e XVII, foi o auge da caça às bruxas, quando já tínhamos um estereótipo extremamente negativo da bruxa enquanto devoradora de crianças e praticante de magia maléfica, que se encontra no Sabbat para cometer canibalismo e relações sexuais com o próprio diabo”, descreve. O pesquisador relata que essa visão negativa sobre as bruxas foi perpetuada também pela literatura e por filmes, e que até hoje ainda existe muito preconceito, como exemplificado pelo caso da bruxa do Guarujá. “A primeira conexão que fazemos nunca é de ‘ah, uma pessoa que comunga com os deuses’, é sempre aquela figura maléfica e terrível”, exemplifica.
Porém, existem casos em que a mídia contribui também para a desconstrução desses estereótipos. É o que Rantin estuda em seu Mestrado, ao analisar a série ‘O Mundo Sombrio de Sabrina’. “Apesar de ela trazer elementos mais sombrios associados à figura da bruxa, ela os utiliza de uma forma irônica e crítica. Então, é sobre como ‘O Mundo Sombrio de Sabrina’ utiliza esses estereótipos negativos relacionados à bruxa para criar uma história que é transgressora e empoderadora à sua maneira”, descreve.
O jornalista conta que já passou por situações em que o preconceito causado por esses estereótipos foi evidente. “Meus próprios pais no começo achavam que eu sacrificaria animais e ficaria comungando com o diabo. Por eu usar um pentagrama, por exemplo, já vi gente cortar o caminho por causa disso, ou fazer o sinal da cruz porque me viu assim”. Ele explica que, na realidade, a prática da bruxaria está muito mais ligada a uma conexão com a natureza. “Eu tinha muito uma ideia de que iria ser como nos filmes, que eu iria balançar o dedo e tudo iria acontecer, mas fui vendo que não é desse jeito, é uma prática religiosa. Então, eu descobri na bruxaria uma prática da minha fé, eu cultuo divindades antigas, sou politeísta. Eu faço rituais, feitiços. E foi a partir de conversas com outros praticantes que eu fui descobrindo que a bruxaria na vida real é extremamente diferente de como é mostrada nos filmes, e que dá muito mais trabalho do que simplesmente balançar o dedo e fazer algo mágico”, relata.
Para realmente superar os estereótipos, Rantin destaca o papel fundamental do diálogo e da busca por informações. “Quando eu pesquisei a bruxa do Guarujá, fiquei muito impactado porque não foi um caso isolado. A caça às bruxas pode ter terminado no sentido de que não temos mais grandes tribunais julgando bruxas, mas as pessoas ainda matam bruxas hoje no mundo inteiro”, relata. “Ainda tememos as bruxas de maneira muito primitiva e visceral, por isso acho muito importante pesquisar e entender que bruxas são apenas pessoas que praticam sua própria fé”, destaca.
Saiba mais :
- Afinal, você sabe o que é bruxaria?
- Simpatia das 7 velas no Halloween
- Simpatia do gato preto – atraia a sua sorte!