A estranha ciência de como percebemos os nossos corpos
O corpo humano desempenha um papel crucial na formação da identidade pessoal. E ainda assim, evidências de pacientes com lesão cerebral e a “ciência das ilusões perceptuais” sugerem que a identidade física pode ser mais fluida do que pensamos.
Um artigo de 2013 publicado no Jornal de Neuropsiquiatria e Neurociência Clínica (Nome original “Journal of Neuropsychiatry and Clinical Neurosciences”), relatou o curioso caso de uma mulher de 82 anos que acreditava não mais controlar o braço esquerdo. Em vez disso, na sua mente esse braço passou a pertencer ao seu irmão.
Seis semanas antes, ela havia sofrido um derrame que afetou o lado esquerdo do rosto, do braço e da fala. Ao entrar em contato com os seus médicos, ela reclamou que “o seu ‘braço do irmão’ não fazia o que ela queria e que isso estava causando um sofrimento significativo”, como relataram os neurologistas Hannah Shereef e Andrea Cavanna.
“A maioria das pessoas está convencida de que as suas partes do corpo são, de fato, suas próprias, mas em algumas condições clínicas esse sentimento de propriedade pode ser perdido”, explica a neurocientista Nadia Barnsley, do Instituto de Pesquisa em Neurociência da Austrália, em Sidney.
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A Síndrome da Mão Alienígena
“Eu me vi olhando para a mão falsa pensando que na verdade ela era minha”.
Embora rara, segundo Barnsley, essa condição – conhecida pelos neurocientistas como “síndrome da mão alienígena” – não é a única. E juntamente com outros distúrbios de percepção, ela fornece insights essenciais sobre como as pessoas representam mentalmente seus corpos.
Há poucas dúvidas de que “a imagem corporal é um conceito complexo que simboliza a forma como as pessoas se percebem e a maneira como se sentem e se comportam em relação ao seu próprio corpo”, escreve o pesquisador líder Santiago Mendo-Lázaro em Fronteiras na Psicologia (nome original: “Frontiers in Psychology”).
Se as pessoas com a Síndrome da Mão Alienígena podem “perder” partes do seu corpo, também seria possível “tomar posse” de novos membros que não lhes pertencem originalmente?
De acordo com a ciência, sim.
Em um estudo pioneiro de 1998, pesquisadores da Universidade de Pittsburgh fizeram uma experiência improvável, conhecida como a “ilusão da mão de borracha”. Eles pediram aos participantes para colocar uma das suas mãos fora do seu campo de visão, atrás de uma barreira. Uma mão falsa e realista foi colocada na frente deles, onde a verdadeira teria estado. Quando o pesquisador escovou suavemente a mão escondida e a falsa (à vista de todos) simultaneamente, algo interessante aconteceu. “Eu me vi olhando para a mão falsa pensando que na verdade era a minha”, relatou um dos participantes.
Cada um dos 10 participantes relatou que conseguia “sentir o toque não do pincel escondido, mas do pincel visto, como se a mão de borracha tivesse sentido o toque”, explicaram os neurocientistas Matthew Botvinick e Jonathan Cohen. Tais ilusões – combinando incorretamente o feedback de um senso de visão, toque e posição – resultam em um falso senso de propriedade.
“As ilusões de propriedade corporal fornecem evidências de que nosso senso de identidade não é coerente e pode ser estendido a objetos não corporais”, explicam os pesquisadores Maryam Alimardani, da Universidade de Tóquio, Shuichi Nishio, do Instituto Internacional de Pesquisa de Telecomunicações Avançadas (Nome original: “Advanced Telecommunications Research Institute International”), e Hiroshi Ishiguro, da Universidade de Osaka.
Tais truques perceptivos fornecem aos psicólogos e cientistas cognitivos insights sobre como a entrada sensorial pode recalibrar a representação mental do corpo e formar uma nova ideia do eu.
E surpreendentemente, esse efeito pode ser estendido a todo o corpo.
Um estudo em 2016, surgido na publicação Nature, pediu às pessoas que controlassem um robô virtual, semelhante ao humano, visto através de uma tela montada na cabeça, a partir de uma perspectiva da primeira pessoa. No primeiro teste, um sistema de captura de movimento 3D monitorou os movimentos da mão do voluntário. Isto foi então espelhado, no tempo e na posição, pela ação do robô virtual na tela. Os participantes relataram uma forte sensação de possuir a mão desenhada por computador, apesar de não ter presença no mundo real.
A visão das pessoas sobre quem elas são, pode – num sentido muito literal – estar influenciando o seu sistema imunológico e prejudicando a sua saúde.
No segundo teste, os participantes usaram eletrodos ligados a um eletroencefalograma (EEG) para registrar a atividade elétrica do cérebro. Após um período de treinamento, os participantes foram capazes de imaginar movimentos simples – captados pelo EEG – para mover a mão virtual. Novamente, os participantes – embora não se movendo – sentiram uma sensação muito real de “possuir” aquela mão.
Sejam reais ou imaginários, os movimentos dos participantes, e o feedback visual correspondente, deram a ilusão de que eles eram donos do corpo do robô – esse fenômeno é conhecido pelos cientistas como “transferência da propriedade do corpo”.
Pesquisas sobre ilusões como a ilusão da mão de borracha e o robô virtual “podem fornecer uma ferramenta inestimável para entender os processos cerebrais que modulam o senso de propriedade do corpo e a experiência do eu”, dizem os pesquisadores líderes Alimardani e Nishio.
Mas por que é importante para a ciência ter uma ideia de como a percepção das pessoas sobre seu corpo físico pode ser falsa?
Bem, segundo pesquisas, a visão das pessoas sobre quem elas são pode estar influenciando o seu sistema imunológico e prejudicando a sua saúde, num sentido muito literal. Isto foi comprovado em um estudo de 2011 repetindo a ilusão da mão de borracha: Pesquisadores registraram uma menor temperatura na mão (real) “deserdada”, e um aumento na produção de histamina do corpo (envolvida nas respostas imunológicas locais). Um estudo de 2014 sobre doenças autoimunes, incluindo artrite reumatoide e esclerose múltipla, produziu mais evidências de apoio. Descobriu-se que quando o corpo não se reconhece, pode começar a se autodestruir. “A autoimunidade é de fato o erro do sistema imunológico em reconhecer suas próprias células como não pertencentes”, diz o neurocientista cognitivo Marcello Costantini.
Melhorar a nossa compreensão da percepção da mente sobre o corpo e o seu impacto no nosso bem-estar físico, pode desvendar os segredos do sistema imunológico e da saúde no longo prazo.
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