Você é insistente ou persistente?
Esse texto foi escrito com todo o cuidado e carinho por um autor convidado. O conteúdo é da sua responsabilidade, não refletindo, necessariamente, a opinião do WeMystic Brasil.
Cobra que não anda não caça sapo, já dizia minha avó. E faz sentido, é claro. Apesar das impressões erradas que as redes sociais passam, nada cai do céu, nada. Até para ganhar na loteria é preciso levantar da cama, pensar em uma sequência de números e comprar um bilhete. A vida é feita de ações que geram resultados, portanto, tudo que queremos alcançar depende, até certo ponto, de nós. Mas, também na contramão do pensamento atual, é certo que não podemos tudo e não temos muito controle sobre o que nos acontece.
“A vida é aquilo que acontece enquanto fazemos planos para o futuro”
Somos ensinados a pensar que devemos correr atrás dos nossos sonhos a qualquer preço. Eu discordo. É por isso que hoje vamos falar da diferença que existe entre insistência e persistência.
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Seja feita a nossa vontade
É com grande espanto que acompanho a evolução do pensamento espiritual. Estou nessa jornada desde a adolescência, e chegamos em um ponto em que a espiritualidade está andando de mãos dadas com o pensamento capitalista e com o culto do eu, do narcisismo, do individualismo.
Caridade, acolhimento, partilha e resiliência são conceitos que saíram de moda. Agora estamos empoderados, certos de que o Universo está a nossa disposição e que realiza todos os nossos desejos. Seja feita a nossa vontade!
Estamos no centro do poder, vivemos a era do “eucentrismo”, onde podemos manipular quanticamente a nossa realidade para termos dela o que desejamos, e a isto chamamos evolução espiritual. Somos como crianças, acreditando no Papai Noel. Esses quadros de desejos, que 100% das vezes tem um conteúdo material – carro, viagem, celular novo, casa nova, emprego dos sonhos – quase nunca está voltado para a verdadeira essência da espiritualidade e aquilo que podemos chamar de despertar da consciência. Ninguém põe ali melhorias de caráter como meta, conseguir perdoar alguém, começar a meditar, se organizar para fazer algum trabalho espiritual ou que envolva doação. Não. Todos querem “coisas” e acham que a espiritualidade verdadeira pode ser usada para atingir esse tipo de objetivo.
“Tudo que te agrada, te engana”
Desejar e ser atendido, com ou sem esforço, é a nova onda mística. É claro que ela ignora completamente a realidade do mundo, questões sociais, desigualdade… Basta desejar e pronto. Basta ser evoluído o suficiente para vibrar nas dimensões da prosperidade. Tudo deve ter um significado, recusamos as falhas, a dor, a tristeza, exigimos 100% de produtividade e de felicidade constante, à custa do pensamento positivo que é tóxico pra caramba. É um reducionismo, uma infantilidade tão egoísta e cruel, que desanima mais do que anima.
Aliás, esse tipo de narrativa é muito perigosa, especialmente em tempos de pandemia, onde dizem que o medo é o que faz você pegar coronavírus. Quem precisa de vacina quando temos a lei do pensamento positivo a nosso favor? Ou então culpamos o pobre doente, que deve ter atraído aquela doença para si. A irresponsabilidade de não seguir o isolamento ou não usar máscara não tem importância, o que vale mesmo é questionar se aquela pessoa era muito negativa ou não, como estava a vibração dela quando foi contaminada ou entender o porquê ela atraiu aquilo para si mesma. É tão triste ver essas pessoas, que ainda se sentem melhores do que as outras, os descobridores das verdades do mundo, os grandes mestres evoluídos e imunes ao coronavírus, que a pandemia fica ainda mais difícil de enfrentar.
Jovem místico e o narcisismo
Que essa galera é egoísta e alienada para caramba, não é novidade. Ao menos não para mim. Mas, felizmente, há quem esteja percebendo o quão ridículo é esse tipo de crença e o quanto elas são nocivas para nós, enquanto sociedade. Temos, inclusive, estudos sendo feitos para traçar o perfil desse “jovem místico hiper-egocêntrico” e os resultados são os já esperados: bando de gente ignorante, alienada e narcisista.
Um dos últimos estudos sobre esse tema foi conduzido por Roos Vonk e Anouk Visser, intitulado “Uma Exploração da Superioridade Espiritual: O Paradoxo da Auto-valorização” e foi publicado no European Journal of Social Psychology. A conclusão foi que algumas formas populares de treinamento espiritual se relacionam com o narcisismo. Porquê? É simples. Esses treinamentos que fazem parte dessa nova onda de positividade e evolução espiritual de araque, faz com que seus adeptos cultuam seus “eus” acima de qualquer coisa. Ao encorajar a autocompaixão e a auto aceitação sem julgamentos, o treinamento espiritual deveria tornar as pessoas menos preocupadas com essas coisas, mas o que acontece na prática é exatamente o oposto: as personalidades narcisistas se deleitam desse tipo de orientação e cria-se, além de tudo, uma necessidade ainda maior de ser bem-sucedido, respeitado e amado.
O que esses treinamentos fazem é trazer uma noção de superioridade espiritual, que mata qualquer chance de florescer a empatia, a verdadeira compreensão do outro ou de como funciona o mundo de verdade. O “jovem místico” se sente superior ao outros, à medida que escala essa montanha do autoconhecimento focado no próprio eu. Foram recrutadas 533 pessoas e orientadas a responder questionários em uma escala de 1 a 7 a uma série de afirmações, da mesma forma que fariam em testes psicométricos típicos. Declarações de exemplo incluem “Estou mais em contato com meus sentidos do que a maioria das outras pessoas”; “Estou mais ciente do que está entre o céu e a terra do que a maioria das pessoas” e “O mundo seria um lugar melhor se outros também tivessem a percepção de que Eu tenho agora”.
O que ficou demonstrado é que existe um excesso de confiança sobrenatural, que alimenta a autoestima dos adeptos, que julgam poder mudar o mundo pois, conseguem vibrar de forma muito elevada e positiva, a ponto de influenciar e curar todos ao seu redor. Logo, vemos a relação desse pensamento com narcisismo, auto-estima e outras variáveis psicológicas, o que faz sentido, escrevem os autores, já que a maioria dos treinamentos espirituais atuais se destinam a desenvolver habilidades sobrenaturais e, assim como a religiosidade, a espiritualidade é um domínio que parece um investimento seguro para a autoestima tóxica. As pessoas tendem a usar a espiritualidade como um elemento que sustenta a autoestima e que as faz se sentirem cada vez mais especiais e diferenciadas. Um contexto extremamente atraente para mentes narcisistas… E após essa reflexão, é que podemos pensar sobre a diferença entre insistência e persistência.
Insistir é dar murro em ponta de faca
Sonhar, ter esperança, querer alcançar e realizar são mesmo grandes impulsionadores do nosso crescimento e dão mais sentido à vida. Para que levantar da cama se não tivermos nenhum objetivo? Precisamos nos movimentar em direção ao que desejamos, sejam esses desejos espirituais ou materiais. Isso é saudável. Mas, quem está de fato desperto, sabe que a resiliência é um valor muito mais espiritual do que a insistência, e traz muito mais crescimento. Às vezes é preciso aceitar certas circunstâncias e tentar contornar os obstáculos para ser feliz. É aqui que entra a persistência. Não consegui assim? Posso tentar de outro jeito, ou modificar meu desejo para que ele se torne mais factível e realizável.
“Concedei-nos Senhor, serenidade necessária, para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguirmos umas das outras”
O erro das pessoas é achar que suas experiências pessoais podem ser usadas como regra. Ou, muito comum também, é querer usar a exceção da regra como métrica. Se eu consegui, você também consegue! Ou “se ele chegou à universidade estudando em folha de papel de pão, todos que moram na favela também podem. Eles que lutem, meritocracia, esforço”. Não levam em consideração que cada ser humano é um universo à parte, que a realidade de cada um é diferente. Há quem esteja feliz com uma vida simples, sem grandes conquistas materiais, e há quem esteja totalmente deprimido (algumas até cometem suicídio) no auge da fama e da riqueza. Tudo é relativo, tudo depende. Nem todos podem, e o lance é que nem todos precisam poder.
Costumamos achar que vence na vida quem acumula riqueza e sucesso, e parecem ser esses os valores cultuados pelos seguidores de livros como “o segredo” e similares. Nem todas as pessoas precisam de bens materiais para serem felizes e a autorrealização é muito mais complexa do que uma bela casa. Isso para não mencionar que esse pensamento invisibiliza questões sociais e a desigualdade que existe em países como o Brasil. Ao invés de lutar para que medidas políticas sejam tomadas para proporcionar mais igualdade, vomitam essa superioridade espiritual e afirmam que qualquer um pode ter o que deseja, basta desejar e ser positivo. É a crença na vontade e no poder pessoal, sem nenhuma medida. Pena a África não ter acesso à internet, para se beneficiar desses grandes segredos espirituais dos nossos novos messias da internet.
Devemos refletir sobre a natureza do pensamento positivo. Não só para desmistificá-lo, como também para acelerarmos nosso crescimento e a evolução do mundo que habitamos. É inegável que atualmente o discurso da atração pela vontade serve somente ao indivíduo, voltado principalmente para o sucesso profissional e financeiro. Vibre positivo, pensando unicamente em você e o céu vai se abrir porque você pode e nasceu para ser feliz. Ora, nada mais denso, egoísta, material e contrário à espiritualidade do que esse individualismo.
Persiste quem aceita
Difícil mesmo é viver sem ter o que desejamos, que é o que acontece com a maior parte das pessoas. Acordar, ser funcional, cuidar de quem amamos, de nós mesmo e ainda pagar as contas é a verdadeira persistência. Para alguns, é verdade, os caminhos se abrem e as conquistas são imensas. E, quase sempre, com muito esforço, é verdade. Mas, para a maior parte das pessoas, a vida é feita de obstáculos e dificuldades, da vida gritando “não” para cada porta que você tenta abrir. E, quanto mais insistimos em algo, mais infelizes ficamos. Às vezes desistir e repensar é o melhor que podemos fazer, e isso é persistência. Seguir a vida, buscando equilíbrio e sabendo que ela é o que é.
A ideia da persistência é não se deixar abater, manter o ânimo e a esperança para ultrapassar o que quer que seja. Quem insiste em algo inviável ou que não dá certo, age como uma criança birrenta que diz “mas eu quero!”. Quem consegue reavaliar e seguir por outros caminhos, persiste. E pode ser que, lá na frente, se encontre com o que imaginamos ser a felicidade possível para quem vive encarnado neste mundo. Só uma coisa é certa: a vida e o despertar espiritual tem muito mais a ver com persistência do que insistência, com partilha ao invés de acúmulo, acolhimento, caridade, com dar o peixe e também ensinar a pescar. Qualquer pensamento que incentive o cada um por si e qualquer tipo de superioridade espiritual é completamente oposta ao que viemos fazer aqui. A vida é um aprendizado, e não um parque de diversões. A própria diversidade da vida nos ensina isso, pena que muitos fecham os olhos para o mundo e só conseguem considerar como verdade aquilo que lhes acontece. Temos carma, temos merecimento, luta, vidas passadas, toda uma realidade histórica, política e religiosa para considerarmos em nossa visão de mundo, além das nossas crenças e vontades individuais. Já dizia buda:
“Um homem disse a Buda: Eu QUERO felicidade. Buda respondeu: Primeiro retire o EU, que é seu ego! Depois retire QUERO, que é seu desejo! Pronto, agora você é deixado com a felicidade”
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