Nos braços do amado, por Gabhishak
Florianópolis, 06 de maio de 2020.
Outono. Céu cor de giz.
Uma xícara de café. Italiano.
Seu aroma e seu calor tocam o rosto.
Percorrem os lábios, a língua, aguçam o paladar.
Esse líquido negro esquenta harmoniosamente o corpo.
Contrastando com a visão gélida outside.
Sento-me confortavelmente. A poltrona é leve e delicada.
É preciso encarar a difícil tarefa de descrever o indescritível.
Abaixo as pálpebras e noto quão limitado é o instrumento responsável pela comunicação.
Talvez, não sei, devesse começar pelo começo.
Perdoe-me a redundância.
Ou seria melhor pelo fim? Como artifício para não ser traído pela memória.
Mas não é essa a mesma memória que sempre me falta?
Marcada que é pela incompletude, parcialidade.
Efêmera.
Abarrotada com registros incompletos de experiências supostamente vividas por um ‘eu’ imaginário em um pedaço ilusório do tempo.
A essa altura do campeonato? Como utilizar esse instrumento fálico, notadamente fálico, para traduzir algo tão…
Palavras rareiam.
Antes mesmo de começar, os dedos imobilizam-se sobre as teclas do macbook air modelo 2014. Tateiam, na desesperada tentativa de reagir à alguma sinapse perdida nas estradas neurais.
Esses impulsos elétricos que já tentei investigar.
Sim, a jornada do buscador tem dessas.
Alguém aponta para o leste e o buscador corre.
Outro alguém aponta para o sul e o buscador, no afã de encontrar algo, muda a direção novamente.
Esse que busca, e busca e busca novamente, algum dia encontrará?
Nesse instante surge uma pergunta de certo modo óbvia: em que momento poderei encontrar se todo meu tempo é dedicado ao buscar?
Chocante. Never? Talvez.
Ouvi Satyaprem dizer em algum momento.
“Você deve parar de buscar e começar a encontrar”.
O buscador deve, isto posto, sair de cena para que o encontrador entre.
Faz sentido.
Paro e observo o corpo respirar fundo.
Um leve toque nas narinas…faringe, laringe, traqueia, pulmões.
Conscientemente, levo a respiração ao ventre, que sobe e desce.
Pela segunda vez apoio as nádegas no assento.
Sem pleonasmo, vejo os olhos fitarem a tela, as teclas, a mesa, as flores emaranhadas entre limões sicilianos.
Negro, marfim, amarelo e verde escuro.
Um cacto de três lanças repousa ferozmente na sacada.
Pena não ser wachuma.
Entrementes, algo ocorre.
Talvez alguma meditação ajude a clarear as ideias.
Será?
E aqui, é preponderante alertar os mais desavisados. Incluindo o próprio ‘escrevedor’.
Falando estamos de meditar como prática. Ação que decorre de um fazer. Prática meditativa.
Não é essa a meditação que todos conhecemos? Sentar-se de acordo com algumas regras, respirar conforme outras, ponta-cabeça, repetir o mesmo canto centos de vezes…o tal macmindfulness ou algum exercício batizado de meditação.
Meditar está na moda. Bom ou ruim?
Ambos, quiçá.
Ocorre que, o nome, meditação, caiu na banalização.
Like god. Com letra minúscula mesmo.
É lamentável, sim, mas é um fato.
Volto, para não perder mais o rumo (perdido, pois, lá em cima).
Acerca da meditação, dizem dos prováveis benefícios. Para o corpo e para a mente.
Sim, a ciência comprova.
Na labuta, tenho visto tal coisa.
Para o corpo e para a mente. Que fique claro!
E se, apenas por hipótese, o interesse, aqui e agora, estiver além de ambos?
Pronto. Elimina-se tudo.
Ciência, academia, métodos e professores.
É um terreno lodoso, em que poucos se arriscam.
Tem gente que nega. Tem gente que tenta explicar.
E as vezes confundem. Muitas.
E se confundem.
Em confusão, propõem esclarecimento.
É curioso. Onde isso vai dar?
Vasculho então o ‘meu’ limitado vocabulário e não encontro coisa alguma capaz de expressar o significado de estar ‘nos braços do amado’.
Mesmo esse ‘estar’ não agrada.
Sigo tentando.
Talvez o mais honesto seja abusar do prefixo ‘in’: in explicável, in crível, in imaginável.
In, de negação.
Não é explicável, nem crível. Tampouco imaginável.
Todos atributos daquele instrumento limitado já mencionado.
Sim, de fato. Muitos mestres já comunicaram o incomunicável.
E foram bem sucedidos.
Mas não é o meu caso.
Aqui, nesse momento, a tentativa é de espremer pelo menos uma ou duas gotas do doce néctar que tenho provado.
Néctar, pólen. Com aquele sabor, cheiro e delicadeza do mel.
Ou seria do vinho; o vinho do amado.
Aromático, encorpado, reluzente e inebriante.
Ocorrem algumas palavras de Rumi, dedicadas a Shams.
Não me servem.
São palavras do Rumi, ao Shams.
Não do Gabhi, ao beloved.
E aqui, surge outra questão: não tenho andado por aí como um papagaio repetindo ideias alheias.
Estou sozinho nesse quarto escuro ou você está comigo, caro leitor?
Tens sido, tu, também um papagaio? Um gravador? Um repetidor? Já investigaste de onde vem tuas ideias? São tuas?
Não estamos, eu e você; e muitos de nós, distribuindo aos quatro cantos o cântico alheio.
Cuja melodia, sabe-se lá, faz algum sentido.
Oh my god!
Desta vez não posso pegar nada emprestado.
Nada de segunda mão. Ou terceira.
As páginas amareladas pelo infindável movimento estacional não serão úteis agora.
Unicamente uma página em branco.
Vazia de conteúdo, repleta de silenciosidade.
Novinha, fresca como o aroma adocicado da cidreira.
Pausa para observar como os sentidos se aprumam frente à simplicidade de uma xícara de chá.
Comecei com café e termino com chá.
Por um milionésimo de segundo, tais experiências parecem refletir aquela, indizível para ‘mim’, dos ‘braços do amado’.
Vou tentar.
Mas não agora. Não aqui.
Porque tem algo inadiável, que faz igualmente parte da vida do buscador.
Mais ainda do encontrador.
Documento salvo automaticamente pelo Google Drive.
Fecho o mac.
E vou lavar a louça!
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