O perigo do vitimismo e também da negação da vítima
Discussões acerca do vitimismo estão muito em voga atualmente, mas pensar esse conceito exige muito mais do que podemos imaginar. Não é tão simples quanto parece e todos os prismas devem ser considerados.
Vítimas existem sim. Assim como existe quem tenta se passar por vítima. E também é verdade que, independente da nossa posição, nos apegar ao que de negativo nos acontece só traz sofrimento e estagnação. É preciso superar seja lá o que tenha acontecido, para fazer a vida andar. O que também não significa ignorar ou invisibilizar o sofrimento que certas situações nos causam. É mesmo complicado.
Sim, vítimas existem
Esse papo de que não existem vítimas é verdade até a página dois. Quando pensamos vítima do ponto de vista espiritual, essa afirmação faz algum sentido. Tudo está certo, não é? Nós planejamos certas situações em nossa vida para poder crescer. Fato. Por exemplo, imagine um espírito que precisa fortalecer sua autoestima. De que adiantaria uma encarnação rodeada de privilégios? Nascer em um lar onde só existe amor, com pais que apoiam incondicionalmente a verdadeira essência daquele espírito? Ele receberia o que precisa para não ativar a baixa estima, mas também não teria conquistado, internamente, a valorização de si mesmo sob qualquer circunstância. Então, muitas vezes ele escolhe nascer em famílias onde ele não será compreendido, talvez seja até humilhado. Até que, em algum momento desse processo, depois de sofrer muito, o espírito se cansa e decide que nada mais importa e que ele sabe o seu valor, apesar do que os “outros” dizem. Pronto, está conquistada a autoestima. Nesse sentido, certas adversidades são programadas.
Porém, não podemos esquecer que vivemos em sociedade e que, na matéria, as coisas nem sempre funcionam de forma simples assim. Para cada abusado, existe sim um abusador. Para cada vítima, um algoz. Dizer que essa relação não existe é muito prejudicial. Muito. Invisibilizar a dor do outro é terrível e pode causar, inclusive, impunidade, e alimentar preconceitos horríveis. Um exemplo muito claro no Brasil é a questão racial. O Brasil é um dos países mais racistas do mundo, que tem a pena mais dura contra esse tipo de ataque: Lei Afonso Arinos. Uma prática racista é crime inafiançável. Embora, na prática, esse tipo de crime consiga ser quase sempre enquadrado na lei como injúria racial, com penas bem mais leves. Pois bem. Alguns gostam de dizer que o racismo é um grande vitimismo dos negros, apesar das evidências inclusive históricas que temos no país. Essa ignorância e falta total de empatia causa uma cegueira onde não é possível enxergar o lugar que o outro ocupa e as dificuldades que enfrenta. E toda a dor causada por esse tipo de situação fica invisível, assim como essas pessoas. E são muitos os exemplos além da questão racial.
As vítimas existem e validar a posição de vítima não significa dizer que aquela é a parte fraca. Quer dizer somente que aquela pessoa sofreu algum tipo de abuso, só isso. É distribuir os papéis, nada mais. E sabemos também que o jogo da vida e do crescimento espiritual, justamente porque conhecemos as leis divinas, exige que toda adversidade seja superada, pois é através delas que crescemos. Mas ela é superada com apoio, compreensão, empatia e amor, nunca com a negação do problema e da dor que as pessoas passam. E é através da empatia pelo próximo que crescemos juntos, enquanto sociedade.
Mas hoje estamos intolerantes com tudo, inclusive com o sofrimento, o que alimenta essa repulsa em reconhecer a vítima como tal em um situação. Não é permitido sofrer e só o fato de apontar o desconforto, de narrar uma adversidade em forma de desabafo, já recebe dedos apontados e julgadores dos inquisidores da ditadura da felicidade e da meritocracia. Tanto é que mesmo nos consultórios médicos, os profissionais optam por medicar o paciente muitas vezes sem a menor necessidade. Antidepressivos são receitados de forma indiscriminada, por não tolerarmos qualquer contrariedade ou contato com o que nos faz sofrer e a conduta médica também está contaminada por esses valores. O perigo do vitimismo mora também na negação dele.
“A mesma sociedade que me deprime vai me vender um remédio pra me alegrar”
O sofrimento é um processo de crescimento, assim como a própria adversidade. E é em pessoas vítimas de abusos, injustiças e discriminação que encontramos as vítimas e, também, o aprendizado. E nomear os algozes e validar o sofrimento tem muito mais a ver com justiça e empatia do que com vitimismo. Aliás, esse é o primeiro passo para a superação da vítima.
Se fazer de vítima
O verdadeiro vitimista não é quem sofre com algo de fato, mas quem quer se colocar nesse lugar e que nem sempre é reconhecido como tal. É quem coloca um peso nos ombros que não carrega de fato. Dizemos para as vítimas reais que elas devem “ressignificar” e “abandonar o vitimismo”, ao mesmo tempo em que validamos os discursos de pessoas que estão se passando por vítimas sem ser, se vangloriando ou querendo um reconhecimento imenso por realizar obrigações ou tarefas cotidianas. Sabe aquela mãe que, quando fica sabendo que seu filho caçula vai se casar, começa, do nada, a sofrer do coração e precisar de muita, mas muita atenção? Pois é. Mas nesses casos, a validação é imediata e o manipulador “sofredor” recebe a atenção e o apoio que não merece.
Ou aqueles pais que tem sim obrigações perante os filhos que colocaram no mundo, mas tudo o que fazem para a criança ou para o adolescente vem envolto em um discurso do coitadismo heróico: “olha como eu sofro para te dar tal coisa”; “eu poderia gastar esse dinheiro comigo, porque tem anos que não consigo comprar nada e passear, mas vou te dar aqui esse dinheiro para você poder estudar graças a mim”. Percebe? São pessoas que se fazem de vítimas por ter de desempenhar suas obrigações. Ou alegam não ter dinheiro e fazem os filhos passarem necessidades desnecessárias, quando, na verdade, estão muito bem financeiramente e são incapazes de oferecer uma ajuda sem colar nela o sermão da montanha. Mas a sociedade em geral não só valida, como aplaude e dá a essas pessoas a atenção que elas querem, não enxergando a manipulação e o vitimismo que há por trás desse discurso.
“A calúnia é sem dúvida o pior dos flagelos, visto que faz dois culpados e uma vítima”
Portanto, vitimismo não é perceber que em uma situação abusiva, há uma vítima. É algo vindo de alguém que quer se colocar no lugar de vítima sem ser, alguém manipulador e egoísta. E isso jamais deveria ser utilizado para invalidar a posição de pessoas que são de fato vítimas de algum tipo de injustiça.
A depressão e o vitimismo
Mesmo com tanta informação, uma grande “vítima” desse discurso do não vitimismo é a depressão. Cada vez mais ela leva vidas, e, ainda assim, muitos ainda continuam associando essa doença grave com vitimismo. São em pontos como a depressão que essa recusa em aceitar vítimas como vítimas e perceber quando alguém quer se colocar nesse lugar por puro egoísmo, que esse discurso esbarra e enfraquece a conscientização.
Depressão não é fraqueza, nem muito menos vitimismo. Embora a posição de vítima, ou seja, alguém que foi agredido de forma sistemática ou que sobre algum tipo de abuso, tenha muito mais chances de desenvolver a doença. E não são sessões de coaching e “ressignificação quântica” que vão curar uma doença como essa, muito menos quando a orientação vem de profissionais não qualificados, se é que podemos chamá-los de profissionais. O coaching também está colado nessa ideia da vítima e também na infantilidade de achar que o universo responde aos nossos anseios. Sim, a Lei da Atração é uma realidade, mas não está ao nosso alcance termos tudo que queremos, até porque, ela não é a única lei que rege o universo. Existe, por exemplo, a Lei do Retorno, também conhecida como Lei do Karma ou Lei da Ação e Reação. Um universo que responde aos desejos é um universo que ignora as leis e a justiça divina.
O coaching no ambiente corporativo, por exemplo, pode ser muito útil, mas, fora dele, especialmente quando se propõe a lidar com transtornos emocionais, é um perigo. Esse desespero de ganhar dinheiro fácil à custa do outro, dizendo o que querem ouvir, é tão vergonhoso quanto os preços abusivos que são cobrados. Vemos isso em uma página nas redes sociais se propôs a mostrar o perigo que as pessoas estão correndo, e o que eles têm encontrado é assustador. Eles procuram esses “profissionais” se passando por interessados, perguntando sobre técnicas, formato do atendimento e valores. Mas passam um contexto emocional com sintomas de esquizofrenia ou depressão grave, com intenção de suicídio por exemplo, e perguntam se mesmo assim a cura é garantida. Em 100% das vezes as respostas que recebem é que sim, bastam algumas sessões de técnicas de coaching com a ressignificação das crenças limitantes e todos esses transtornos serão curados. E os preços são salgados: alguns desses charlatões chegaram a cobrar 7.500 reais para realizar sessões online para esquizofrênicos. Um absurdo que logo vai se transformar em uma questão de saúde pública.
“O próprio conceito de coach, que vem do mundo dos esportes, pressupõe que você está competindo com os demais para vencer o jogo. Há um perigo em enxergar a vida como uma partida em que há vencedores e perdedores”
E, quando questionados sobre a capacitação que possuem, enchem a boca para dizer que são formados nos melhores cursos de coaching do país. Muitos possuem formação superior em áreas que nada tem a ver com a saúde, mas muitos nem sequer formação possuem. São jovens, sem nenhum preparo, se disponibilizando a atender pessoas com sérios transtornos psiquiátricos através da ressignificação de crenças limitantes. A ciência sangra.
Vale lembrar que o coaching pode ser muito útil, mas há limites. E eles começam pela saúde mental das pessoas.
Abandonar o vitimismo e progredir
Vítimas ou não, é também uma verdade que, se ficarmos apegados à nossa dor, aquele momento traumático, ou em nosso egoísmo que nos faz negligenciar o outro, a vida não vai progredir, pois não vamos criar os meios necessários para que a prosperidade seja uma constante e nossos objetivos sejam alcançados. Apego traz estagnação.
“O coração do homem é como um moinho que trabalha sem parar. Se não há nada para moer, corre o risco de se triturar a si mesmo.”
Para superar a própria vida, um dos segredos é a gratidão. Através dela, conseguimos extrair das situações o que de melhor elas podem oferecer. O sofrimento programado por nós ou infligido pelo outro, por mais que nos cause dor, vai trazer algum tipo de aprendizado ou fortalecimento. E, para acessá-los, não é preciso negar a dor, ignorar o sofrimento e empurrar para debaixo do tapete o que não vai bem. O nome disso não é força, é negação.
A espiritualidade equilibrada nos dá condições de exercer a gratidão, sem negação ou apego. Ela é a melhor forma de compreender a nossa vida e o que nos acontece, com a paz no coração que precisamos para seguir. Não negue sua dor, nem a dor do outro. Aceite, vivencie o que tiver que viver e deixe ir. O processo em si é doloroso, exige maturidade, mas o resultado dele é o verdadeiro crescimento espiritual.
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