Quarentena: o desejo de voltar ao normal e a transformação do planeta
Escutamos bastante por aí pessoas dizendo que não veem a hora de voltar ao normal. Com menos de um mês de isolamento, o desejo da antiga vida parece mais urgente do que a própria pandemia. Queremos muito voltar a normal, no sentido de que isso tudo acabe, que a pandemia termine. Seja de forma orgânica, uma através de uma vacina ou tratamentos que curam.
Mas que normal é possível, após tudo que estamos vendo acontecer?
“Aquilo que provamos quando estamos apaixonados talvez seja o nosso estado normal. O amor mostra ao homem como é que ele deveria ser sempre.”
Será que o normal era, de fato, normal?
O que significa em um cenário pós pandêmico voltar ao normal? Que normal seria esse? Quando pensamos em ter a liberdade de sair de casa e encontrar com amigos, com a família, esse é um normal bacana. É justo sentir falta desse normal. Ter liberdade. Mas o que estamos testemunhando coloca em xeque tantas coisas, que fica difícil querer voltar para o mundo de antes. Por exemplo o trabalho. Está bem claro que muita gente já poderia estar trabalhando de casa, e que a produtividade nesses casos pode até aumentar. Vimos também o quanto eram inúteis muitas reuniões e viagens de trabalho. E com menos gente circulando, temos menos trânsito. Com menos atividade temos menos poluição, menos aquecimento global. Está sobrando mais tempo livre e a convivência familiar está fortalecida. A natureza parece ter florescido em tão pouco tempo!
“Não há um normal que não seja anormal; e nenhum anormal que não seja passível de ser um mestre!”
Outro normal que seria ótimo não ter de volta é a população de rua. Por motivos óbvios. É insuportável conviver com a ideia de que existem pessoas vivendo nas ruas. Não é normal ter uma população de rua maior que alguns países inteiros. A miséria deve ser combatida com o mesmo afinco que mobilizamos milhões para recuperar uma catedral europeia. Isso vale também para as favelas, presídios e comunidades onde nem o saneamento básico chegou. É inconcebível achar que isso é normal, que a pandemia não está jogando isso tudo na cara da sociedade. Um mundo em que existem territórios riquíssimos, logo ali ao lado da África. Na região tem guerras ainda, vale lembrar. Também nada normal. A maneira como tratamos a natureza, o estrago que causamos no meio ambiente, nosso consumo predatório, a quantidade de horas que dedicamos para sustentar isso tudo, que é o nosso trabalho. Nada disso é normal. Já estávamos muito doentes antes mesmo do vírus… E por isso achamos que mudanças incríveis vão acontecer quando voltarmos ao normal.
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A história não mostra mudanças
Nós já passamos momentos muito piores do que este, como a gripe espanhola, a peste e duas guerras mundiais. E antes deles, tiveram outros tantos. É olhando para o passado, para essas histórias, que podemos tentar projetar o futuro. E muitas pessoas têm projetado um futuro transformado, com uma humanidade regenerada. Como se transformações extraordinárias fossem acontecer, a ponto de fazer deste mundo um lugar mais justo. Porque aprendemos a lição. Porque estamos na transição planetária. Porque recebemos uma benção, uma oportunidade. E provavelmente recebemos mesmo, já que uma pandemia como essa é muito menos assustadora que uma guerra nuclear, se considerarmos que estamos mesmo em um processo evolutivo mais acelerado. Mas, olhando para a história e para a realidade atual, as conclusões não são animadoras.
Que o mundo sofrerá um impacto imenso, não há dúvidas. Assim como saímos diferentes da II Guerra, o que vem pela frente também vai marcar nosso percurso. Entretanto, as mudanças ocorrem mais na prática, em questões objetivas, do que no campo da consciência. Por exemplo, após a gripe espanhola foram criados os ministérios da saúde, para que houvesse uma organização sanitária presente e atuante na sociedade. Isso é uma mudança totalmente positiva, uma evolução, mas que ainda mantém totalmente o status quo. Ela não quebra barreiras, ela protege o que já existe. Como agora, por exemplo, o mundo vai estar mais preparado para a próxima pandemia, no sentido de controle de aeroportos, fronteiras e turismo, podendo contar ainda com os erros e acertos da atual situação. Mas falamos de medidas práticas, que trabalham para proteger a sociedade como ela é.
Embora o que existe de pior no sistema que alimentamos esteja exposto mais do que nunca, vemos que a preocupação geral das pessoas (sejam elas cidadãos, governo ou empresas) ainda gira em torno de preservar justamente o que causa esse “pior”. Quando vemos um empresário de uma rede de lojas falando contra a quarentena, porque se preocupa com o desemprego e os pobres, é quando identificamos essa vontade de que tudo se mantenha como antes custe o que custar. O que esse cara tem medo é de perder dinheiro, patrimônio. Ele pode fechar suas milhares de lojas e ainda pode operar online. Ele tem caixa para isso. Mas a crise econômica que vem depois é o que preocupa esses tipos. O que ele deseja é manter seguro o que ele já tem e garantir que ele vai acumular ainda mais. E como as políticas incentivam o acúmulo, a renda fica concentrada e temos esses bilionários pelo mundo. É por isso que para muitos, a economia é mais importante que vidas. Mesmo sabendo que ela enquanto entidade eventualmente vai se recuperar, mas ela não pode se recuperar as custas do dinheiro deles.
Falando em acúmulo, vemos também uma horda de pessoas que acumulam produtos e são incapazes de pensar no outro. Desde quem compra milhares de máscaras até as pessoas que estocaram papel higiênico, a preocupação ainda está centrada em si e em como extrair o máximo do sistema para benefício próprio. Vemos também a guerra pelos recursos, com países fazendo jogo sujo e confiscando insumos destinados a outros lugares. A realidade é que as grandes questões não estão sendo debatidas. Ou se estão, a economia está ganhando de lavada. Por isso fica difícil acreditar que uma transformação enorme vá acontecer tão cedo.
A espiritualidade em geral também não fica atrás
Se o comportamento social e político das pessoas denuncia que pouco vai mudar, a noção espiritual de muitas também não fica atrás. Isso não quer dizer que não existam coisas incríveis acontecendo. Mas quando olhamos para o todo, para o tal senso comum, é que podemos realmente tirar conclusões mais embasadas na realidade. A exceção não faz a regra, infelizmente. É no todo que estão as respostas e esse todo também não está discutindo as grandes questões, aquelas que podem promover a mudança que desejamos. A começar pela recusa em estudar a realidade, principalmente se ela não é agradável. Quem faz isso é chamado de negativo. O discurso geral é o de se afastar de notícias e pensar o mínimo possível no que está acontecendo, para não sentir medo. O medo é ruim, ele desequilibra a aura. Aí já temos um problema grande, pois o medo vem de um instinto humano de sobrevivência, algo que está em nosso DNA e não pode ser negado. É compreensível sentir medo em uma pandemia, seja por você ou seja por aqueles que você ama. Negar, recusar ou calar o medo não ajuda já que dependemos da informação e do nosso instinto de proteção para tomarmos as melhores decisões. É claro que a ideia é tentar transformar esse medo em coisas positivas, para manter o equilíbrio energético e espiritual. Tem gente que consegue fazer isso muito bem e tem gente que tem mais dificuldade, mas o que importa é lidar com ele e não proibi-lo.
“Todos os homens têm medo. Quem não tem medo não é normal; isso nada tem a ver com a coragem”
Outra curiosidade é que parece que muitas pessoas esqueceram que existem certas leis divinas, que extrapolam a nossa capacidade de vibração e força de vontade. Grosso modo, é dito que vibrar no medo adoece mais que a doença, que é o medo que faz alguém ficar doente. Como se o vírus não conseguisse se reproduzir em um corpo que está seguro e tranquilo, uma imunidade garantida pela positividade. Até certo ponto, faz sentido. Medo está relacionado ao stress, que baixa a nossa imunidade. Mas isso não é decisivo, não pode ser o fator X que determina quem vive ou quem morre. Há um carma, resgates, uma programação também envolvida. A reencarnação é a ideia que sustenta quase todas as doutrinas mais espiritualizadas, e nessas horas vemos como isso tudo cai por terra quando afirmamos que o que é decisivo é a vibração energética. E só é permitido olhar para o que é positivo, mesmo que esse positivo seja quase insignificante perante o contexto. Basta um idoso centenário recuperado, para que todos os outros milhares que morreram não possam dimensionar a realidade. Não seria essa uma forma muito nociva de medo? Se agarrar em algo tão frágil para se sentir protegido? Talvez essas pessoas sejam as que mais temem, por isso precisam evitar a realidade e criar fórmulas mágicas para se salvar.
“O destino normal das novas verdades é começar como heresias e terminar como superstições”
Nesse campo espiritual, as grandes questões também não estão sendo debatidas. Há caridade, o que já é meio caminho andado. Mas a percepção da realidade e de como podemos interferir nela é pouca. A política é assunto proibido, notícias também, e a ciência não tem muito apelo. Querem mudanças rezando, melhorando a si mesmos (o que é ótimo), mas quando precisam enxergar o outro e a realidade do outro, pecam. É por isso que vemos acontecer o fenômeno que coloca Jesus na mesma lógica que armas, e acha que bandido bom é bandido morto. Amar o inimigo é mesmo difícil… Ainda mais em uma pandemia.
Se é esse o pensamento evoluído e transformador, é compreensível que o “normal” seja o desejo de tanta gente.
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