Fora da caridade não há salvação: ajudar o próximo desperta sua consciência
Fora da caridade não há salvação.
Allan Kardec
Essa frase é muito profunda e consegue sintetizar o que é a espiritualidade e a nossa jornada evolutiva. Ela está presente no livro “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, escrito por Allan Kardec e publicado na França em 1864. É uma das obras básicas do espiritismo, e dentre elas a que dá maior enfoque a questões religiosas, éticas e comportamentais do ser humano.
Na obra, Kardec divide os relatos contidos nos evangelhos canônicos em cinco partes: os atos ordinários da vida de Jesus, os milagres, as predições, as palavras que serviram de base aos dogmas e os ensinamentos morais. Assim, podemos dizer que Kardec lança um olhar espírita sobre os relatos dos apóstolos, o que confere à obra uma essência católica somada a visão espírita do mundo.
Mas nesse artigo vamos transcender as religiões e analisar a frase sobre uma perspectiva espiritualista, para buscar compreender como essa frase se relaciona com a nossa jornada evolutiva.
Além de qualquer doutrina
A frase é atemporal e desprendida de qualquer doutrina e é isso que considero mais incrível nessa sentença e na ideia que ela passa. Veja, a frase diz que fora da caridade não há salvação, e não fora do espiritismo não há salvação. Diferente de outras correntes que se colocam como as únicas salvadoras possíveis, como as detentoras de uma verdade que exclui outras crença, essa frase aponta um caminho livre, desprendido de dogmas e da obrigatoriedade da submissão espiritual a uma determinada filosofia metafísica. Se assim não fosse, a frase já não poderia ser considerada um caminho de liberdade e evolução mas sim uma ferramenta evangelizadora.
“Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem o dinheiro para recuperar a saúde”
Qualquer pessoa que busca um despertar espiritual mais completo, acaba bebendo de várias fontes e trilhando caminho diferentes, mas que possuem a mesma essência: Deus. Engana-se muito quem internaliza a falácia de que há somente um caminho, uma única doutrina possível para aproximação com Deus. A vida é plural, a natureza é plural, o universo é diverso. E tudo que existe como reflexo da inteligência suprema contém em si esses atributos. Ao longo dos anos e de acordo com cada cultura e necessidades de desenvolvimento, Deus enviou mestres para abrir as portas do espiritual com sua mensagem. Deus adequa seu discurso a época e a cultura, sem deixar ninguém de fora.
Porém, em torno de cada mestre se formaram religiões baseadas em dogmas, que refletem as características humanas e não divinas. Essa é a questão com as religiões: criações humanas, com objetivos humanos, mas que possuem inspiração do criador. E a história comprova isso, especialmente quando observamos as atrocidades contra a vida humana e os atrasos de desenvolvimento que algumas delas causaram. Entretanto, ainda reside nelas muita verdade e ensinamentos para quem busca se aproximar de Deus. Cada qual com sua essência, de todas elas podemos retirar lições muito valiosas.
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Quem vive para si está longe do caminho espiritual
A encarnação na matéria é muito difícil. Muito. Vivemos aprisionados em um corpo solitário, sem conexão alguma com o universo espiritual e sujeitos a toda sorte de acontecimentos. E a todo momento somos seduzidos pelas armadilhas criadas pela sociedade, que atende aos anseios de poder e ao ego de poucos. Desde que deixamos de ser caçadores-coletores e nos estabelecemos em torno da agricultura, criamos uma organização social onde prevaleceu o domínio de poucos sobre a maioria, obrigada a trabalhar duro para sustentar os luxos de uma minoria. Criamos impérios, monarquias, nações. E em todos esses sistemas uma pequena parte da sociedade pôde usufruir de certos privilégios, conquistados através da exploração do outro, da vida do outro e do trabalho do outro. E com a organização social baseada no mercantilismo, o que conhecemos hoje como capitalismo, nada mudou. A riqueza fica nas mãos de poucos, enquanto a grande maioria trabalha e sofre com o pagamento de impostos que mantêm essa elite no topo da pirâmide social.
Somos ensinados que devemos trabalhar a exaustão, produzir o máximo possível para alcançar alguma dignidade na vida. Obviamente, há alguma verdade nessa frase, já que tudo que existe está em constante movimento e transformação. Quem nada produz, fica estagnado. O trabalho é sim muito nobre e é através dele que conseguimos progredir, que a tecnologia pode avançar e que a sociedade consegue se manter. Mas entre uma ideia e a prática existe um abismo, e é por isso que vemos como o trabalho humano é explorado e nos escraviza.
Entramos em um ciclo de aprisionamento quando acreditamos que a dignidade que buscamos está nas conquistas materiais. Comprar, comprar, comprar. Acumular. Obter diferenciação através das posses, da exclusividade que o dinheiro pode comprar.
E começamos a correr atrás disso e a ferramenta que temos é o trabalho. No fim, o consumo e o trabalho como se apresentam na sociedade atual servem para manter o poder e a prosperidade de uma ínfima parte do mundo.
É a história da cenoura à frente do coelho ou da roda do hamster que gira sem cessar. E quando caímos nessa armadilha, começamos a viver apenas para nós. Importa o eu, o meu, a minha felicidade e as minhas necessidades. Começamos a ignorar o outro e o que acontece à nossa volta, pois, se eu tenho um teto, azar de quem está na rua e não trabalhou o suficiente para conseguir uma moradia. Se minha mesa tem comida, é porque mereci e trabalhei duro.
E pior, há quem credite seu “sucesso” às bênçãos de Deus, como se ele os tivesse escolhido para desfrutar a vida e ter acesso a uma felicidade que negou a tantos outros. Quando ajudamos, quase sempre é porque temos algum interesse nessa relação, seja porque a pessoa que recebe a ajuda é um amigo ou familiar, e, portanto, temos com ela uma relação afetiva, ou seja por interesse mesmo. Os outros tornam-se problemas deles e ficamos cada vez mais intolerantes com a vida alheia e cegos em relação a como funciona o mundo e a sociedade.
Esquecemos que estamos todos conectados e que o acontece ao outro também nos influencia. Se alguém está na rua passando fome, isso tem um impacto sobre nós muito maior do que pode supor a nossa individualidade. É por isso que a ideia expressa na frase dita por Kardec, que fora da caridade não há salvação, é tão profunda e sintetiza uma elevação espiritual fora do comum, pois, ela nos desperta para o mundo, para o que há de externo em nós, para essa conexão do indivíduo com o todo.
O que há de especial na caridade
A quem muito foi dado, muito será cobrado. Não há nada de errado em buscar conforto material, em usufruir de tudo de bom que o dinheiro pode comprar. Mesmo as coisas mais fúteis, como, por exemplo, roupas de marca caríssimas, não precisam ser demonizadas e abandonadas para trilharmos um caminho mais espiritualizado. O problema está quando usamos esse poder material que conquistamos somente em nosso benefício. Infeliz daquele que tem influência suficiente para fazer a diferença no mundo, para proporcionar dignidade para quem se encontra vulnerável, mas usa seu poder somente para si, para satisfazer o ego.
Tudo que nos é dado, ou melhor, tudo aquilo que nos é permitido alcançar pode ser revertido no bem comum. A mediunidade é um grande exemplo disso, e a desconfiança que existe em relação a ela evidencia as falhas humanas. Quem possui algum nível de mediunidade sabe que ela deve ser usada em favor do próximo, para ajudar a amenizar as dificuldades que os espíritos enfrentam quando encarnados. Porém, não raro escutamos coisas do tipo “se você é vidente, porque não acerta os números da loteria?” e outras afirmações do gênero. Isso mostra não só a inclinação dessa pessoa em viver somente para si, como também a ideia que ela faz de Deus e da espiritualidade. Enganadas, pensam ser mentira as habilidades mediúnicas de alguns, já que ela não está sendo direcionada para obter vantagem, fazer dinheiro e acumular riqueza. É difícil fazer uma consciência dessas perceber a comunidade que a rodeia e que a espiritualidade em geral passa pela união com o próximo, distante do ego e do que a matéria tem a nos oferecer.
“A caridade é um exercício espiritual… Quem pratica o bem, coloca em movimento as forças da alma”
Essa é a mágica da caridade. E como caridade podemos entender toda e qualquer ação que beneficie o próximo. Desde carregar a sacola para aquela vizinha idosa, segurar a porta do elevador, dar passagem no trânsito para um pedestre, alimentar um animal de rua ou dar de comer a quem tem fome. Não é preciso ser rico para ajudar quem cruza seu caminho. Às vezes um sorriso é suficiente, ou até mesmo o seu tempo. Sim, podemos doar tempo. Mas em uma sociedade que vive orientada pela frase “tempo é dinheiro”, até mesmo o nosso tempo precisa ser capitalizado…
Caridade é buscar viver em sociedade da forma mais harmônica possível com o outro. Exercer a caridade nos torna sensíveis ao que acontece ao nosso redor e nos ensina o valor da vida que existe além de nós. Ela tira nos tira o protagonismo constante, o eu, para lançar um olhar mais abrangente sobre a vida. A tolerância começa também a ser desperta em nosso espírito, pois passamos a compreender a singularidade de cada jornada espiritual e das diferentes necessidades que cada espírito apresenta, já que temos uma enorme inclinação a tomar como verdade a nossa própria experiência, a parte pelo todo. O nosso umbigo acaba servindo de medida para compreender a vida. E assim vamos despertando para a nossa condição espiritual, percebendo que a nossa jornada de aprendizado está totalmente ligada as nossas emoções, percepções e especialmente na qualidade das relações que estabelecemos com o próximo.
Caridade versus justiça social
Penso ser muito importante fazer essa diferenciação no artigo, pois, o que o senso comum entende por caridade muitas vezes é um entendimento revestido de egoísmo. A justiça social, ou seja, a possibilidade de melhorar a vida dos vulneráveis também deve ser um objetivo, uma das inúmeras maneiras de ajudar que cabem dentro do conceito de caridade. Dar de comer a quem tem fome é caridade. Mas lutar para que essa pessoa desfrute de uma boa escola, de um sistema de saúde digno e que tenha condições de transformar sua vida também é.
“A fingida caridade do rico não passa, da sua parte de mais um luxo; ele alimenta os pobres como cães e cavalos”
Infelizmente, muitas pessoas acabam usando a caridade para agradar o ego. Fazem uma ação, tiram muitas fotos e postam nas redes sociais buscando mostrar como são pessoas adoráveis. Gostam de dar, mas não de transformar. Doam cestas básicas no Natal, mas ai de quem quiser ajudar o pobre a estudar. Visitam a África, mas não aceitam dividir o espaço exclusivo das universidades. Recebem auxílio e incentivos do governo através de suas empresas, que diga-se de passagem, adoram usar o marketing social como construção de imagem e reputação de marca, mas odeiam o assistencialismo. Sustentam as farras dos políticos e todos os privilégios indecentes do judiciário sem reclamar, mas deus nos livre de usar qualquer parte dos impostos pagos para proporcionar uma renda extra para quem precisa.
“A maior caridade é habilitar o pobre a ganhar a sua vida”
A justiça social é essencial e deve estar em nosso horizonte sempre. Só a caridade, por si só, não transforma a vida de ninguém. Nem só dar o peixe nem tampouco só ensinar a pescar resolve o problema de quem tem fome. É preciso ambos. É no equilíbrio e união dessas duas frentes que reside a verdadeira caridade, o equilíbrio perfeito que nos conduz a uma sociedade mais justa. E ter essa percepção também faz parte do despertar espiritual. Ajudar e transformar são os pilares que sustentam a caridade.
Fora da caridade não há salvação. Sem enxergar o outro não existe possibilidade de exercer uma espiritualidade elevada. Acordar a mente é conseguir perceber além de nós mesmos.
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