Às vezes sinto que não sou eu… Por Gabhishak
Esse texto foi escrito com todo o cuidado e carinho por um autor convidado. O conteúdo é da sua responsabilidade, não refletindo, necessariamente, a opinião do WeMystic Brasil.
Aconteceu.
Era um final de tarde fora-do-comum.
Olho pela janela e noto: céu laranja acinzentado. Vento sul.
Nem frio, nem calor; temperatura amena, confortável.
Me desvisto e acompanho o corpo até o mar.
Não sem antes transpor alguns obstáculos.
Uma pequena trilha, alguns arbustos; dunas que miram o horizonte.
Nuvens carregadas ameaçando pingar.
À direita dos olhos, uma moça e seu buldogue inglês admiram confortavelmente o cair da tarde.
Ela, em um banquinho de madeira cravado no chão.
Ele, rebolando o avantajado traseiro em uma pequena porção de folhas secas e galhos retorcidos.
À esquerda dois pescadores travam uma pequena batalha.
Um contra o outro? Não.
Ambos peleiam contra uma pequena cobra, que serpenteia de um lado ao outro, como que buscando alguma alternativa para sair do embate.
O mais corajoso (a julgar pela iniciativa) cata um pedaço de pau e tenta, sem sucesso, lançar o animal de volta às dunas.
Tarefa inglória. A cada tentativa um novo e belo escorregão barranco abaixo.
Parecia uma coral verdadeira. Pelo menos as cores eram tal qual.
Respiro fundo e continuo meu trajeto.
Alguns segundos mais e enfim sinto a textura macia da areia em meus pés. Não aquela areia grossa, de grãos coloridos, mas aquela outra, lisinha, clarinha, fininha. Amarelo-clara, por assim dizer.
Troco duas ou três palavras com o homem-da-cobra e percebo em sua face os olhos cínicos e bochechas rosadas daquele que acabou de vencer um grande duelo.
Conseguiu? – pergunto.
Sim.
E seguiu, sem olhar atrás.
Apenas um surfista na água.
Algo raro, considerando o horário e a ondulação perfeita trazida pelo maral.
Um metro bem desenhado, quebrando à direita de quem da praia olha.
E a água gélida – muito gelada.
Faz um tempo que a temperatura da água deixou de ser um problema.
A primeira vez que entrei e permaneci na água gelada foi no último verão em Begur.
Ainda me lembro que depois de trinta minutos nadando, foram outros trinta minutos tremendo como vara verde do lado de fora. O corpo ainda não estava devidamente preparado.
Essa pequena cidade na Costa Brava espanhola, de águas claras, quase azuis, foi a responsável pelo primeiro passo.
Ali eu provei o método win Hof de verdade!
De lá para cá, tenho percebido o corpo cada vez mais a vontade em baixas temperaturas. Noto que o banho gelado vem gradualmente passando de algo desconfortável para uma experiência prazerosa.
E meditativa, já que a respiração atenta foi minha maior companheira neste último inverno em que me banhei quase todos os dias, com temperaturas que foram de 05 a 18 graus.
Mas hoje foi diferente.
Já no final do banho, senti como nunca antes uma forte pulsação.
O corpo vibrava intensamente diante dos meus olhos.
Havia uma certa euforia, energeticamente falando.
Então comecei a correr pela beira, brincando com o Madiba (street dog), até que algo estranho (é a palavra que me ocorre agora) aconteceu.
Durante alguns segundos materializou-se a percepção duque não havia ninguém correndo.
Não sei se será possível transmitir essa experiência por meio do meu limitado português.
Tentarei.
No começo eu corria e sentia o corpo balançando, a cabeça pesada, os braços e pernas cambaleando; mas logo isso foi diminuindo até o ponto em que restou unicamente a observação de um corpo correndo à beira da praia.
Eu desapareci e ficou apenas o corpo.
Houve uma dissociação clara; era possível observar os fenômenos, todos eles, em ocorrência simultânea dentro de um campo de observação vasto e atemporal.
Enfim, caí na água.
Retomei a ‘consciência’.
Agora, no momento em que tento reproduzir o ocorrido, noto quão pobre é o vocabulário reunido na mente. Quão limitado é esse instrumento, quando o assunto foge das trivialidades ou das suas coleções de experiências e memórias.
Permaneci mais alguns instantes ali, atirado na areia, meio sem rumo, meio sem saber o que fazer. A cabeça voltou a pesar e logo tomei ‘posse’ do corpo novamente.
Novamente e infelizmente.
Pois naqueles micro, quiçá nanosegundos, o Gabhishak deixou de existir…não havia ‘eu’, não havia corpo; o que restou foi unicamente a experiência.
E, como toda experiência, se foi.
Acabou!
Saiba mais :