A vida é muito mais do que trabalho: VOCÊ NÃO É O SEU TRABALHO
Quando perguntam “quem é você?”, como você responde? A maior parte das pessoas começa falando a profissão: “sou médico” ou “sou professora”, por exemplo. Como se a nossa profissão fosse capaz de nos definir, de expressar nossa complexidade e profundidade existencial. Esse comportamento acontece de forma tão natural, que poucas vezes paramos para pensar de onde ele vem. Precisamos refletir sobre a nossa relação com o trabalho e o poder que damos a ele, a ponto dele ser aquilo que nos define.
Você não é o seu trabalho
Se o trabalho fosse como uma roupa que você pode retirar, o que sobraria de você sem ele? E se depois retirassem seus títulos? Suas posses? Suas “coisas”? O que restaria?
“O rei está nu”
O conto sobre a roupa nova do rei que termina a história nu, fala sobre como a vaidade nos deixa tolos diante da vida e nos faz contrariar até mesmo nossos sentidos. Essa roupa incrível, diferenciada e exclusiva que queremos vestir é o nosso trabalho, já que é a remuneração dele que nos permite ter coisas, consumir. As coisas que compramos são outras camadas que adicionamos ao “eu”. É através dessas coisas que nos diferenciamos, que nos expressamos, que nos sentimos especiais e realizados. Quanto maior o título, mais importância você tem, mais coisas consegue comprar. E mais você se torna uma pessoa de sucesso, um vencedor.
Mas não somos o nosso trabalho. Aliás, ele só existe para fazer a sociedade funcionar dentro do sistema que criamos. Essa escravidão servil que ele gera é fruto da maneira como distorcemos o trabalho e construímos nossos valores sociais. No mundo espiritual, por exemplo, a ideia de trabalho é bem diferente: tem muito mais a ver com compartilhar e auxiliar do que com acumular e produzir.
A alma é o que resta quando retiramos todas as coberturas que colocamos sobre ela. É aos desejos dela que devemos sucumbir, é ela quem deve nos governar. Somos muito mais do que nosso trabalho, a vida é muito mais do que nosso trabalho. A morte também.
Passamos muitas horas no escritório…
Essa sensação de que somos o nosso trabalho também tem muito a ver com quantas horas do dia dedicamos a ele, ou quanto tempo da nossa vida dedicamos a ele. Ter uma carga horária de 4 horas é uma coisa. De 8, já exige muito mais de nós. E quem trabalha só 8 horas por dia é privilegiado nesse mundo da ditadura da produtividade. O normal é termos cargas de trabalho que variam entre 10 e 15 horas de jornada. Passamos mais tempo no trabalho do que com a família e amigos. Alguns trabalhos exigem anos de estudo, portanto, falamos de adolescentes que já recusavam distrações para estudar e passar em determinados vestibulares. A pressão e a cobrança são tão grandes, a expectativa de compensação e vitória que nos oferecem é tão sedutora, que sacrificamos nossas vidas de bom grado para sustentar as empresas, que sustentam o sistema, que sustenta a poucos. O dinheiro fica com poucos. Nunca esqueça que a riqueza monetária do mundo está na mão de 1% das pessoas, que tem mais do que o dobro da riqueza do resto da humanidade combinada. É essa a realidade da nossa economia.
Adaptamos toda a nossa vida em função do trabalho e só consideramos bom profissional quem consegue separar (ignorar seria uma palavra melhor) a vida pessoal da profissional. Essa é uma das piores mentiras do mundo corporativo, essa que faz a gente pensar que não somos seres integrais, que a nossa vida e a nossa dimensão emocional podem ser separadas do nosso “eu” profissional. A verdade é que nós não somos importantes, mas o que produzimos tem valor. Por isso, seja como for, produza. Vista a camisa. Se entregue e alcance o sucesso. Essa é a cultura corporativa na qual somos formados. E é exigido tanto de nós, que quase sempre confundimos o que produzimos com aquilo que somos. Por isso, quase todas as pessoas respondem à pergunta “quem é você?” com as suas profissões.
O que está acontecendo com o trabalho
Para muitos, nada mudou. Quando digo que nada mudou, é no sentido de que existem atividades que não podem funcionar a distância, como caixas de supermercado, por exemplo. Essas pessoas não podem fazer home office. Mas muitas outras funções que antes eram essencialmente exercidas no escritório, agora passaram a funcionar muito bem à distância.
“O prazer no trabalho aperfeiçoa a obra”
Perdíamos um tempo precioso. Só de não ter que enfrentar o trânsito das grandes cidades, a rotina profissional tem um ganho enorme de produtividade. Vimos que muitas reuniões podem ser feitas online e que a maioria das viagens que fazíamos eram dispensáveis. Nem todos precisam estar todos os dias dentro da empresa para fazer ela funcionar. A virtualização, flexibilidade e digitalização do trabalho que antes eram tabus (home office era para poucos da hierarquia profissional), agora são uma questão de vida ou morte para que a sociedade continue a funcionar. A cultura corporativa vai ter que mudar. Já está mudando.
Nossa relação com trabalho envolve, mais do que nunca, a família, a saúde, e a necessidade de desenvolvermos relações mais humanas entre empregador e empregado. Depois que o mundo parou, no meio de muitas reuniões vemos crianças invadindo os “escritórios” dos pais. Agora, a pausa para o almoço é feita em família. Aliás, é pela família que estamos em casa. Finalmente ela conseguiu se tornar a nossa prioridade, e estamos nos permitindo adaptar o trabalho a ela, não o contrário. Essa também é uma grande mudança.
Se essas mudanças são permanentes, só o tempo vai dizer. O mundo está nos mostrando uma alternativa, uma nova forma de funcionar. Está nos fazendo remediar na marra nossa desigualdade social e repensar o impacto ambiental do nosso estilo de vida. O fato é que, quanto mais do “velho” desejarmos preservar, menos vamos evoluir. A transformação exige mudanças e a natureza se encarregou de nos mostrar os caminhos. Se vamos segui-los ou não, talvez nem deus saiba.
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