Você está em casa? Isso não é para todos
Essa é a primeira lição da pandemia: ficar em casa não é para todos. Temos a quarentena de quem está preocupado em lidar com o tédio, procurando séries, livros e cursos para se entreter, e temos a quarentena de quem precisa trabalhar para comer. Temos também a quarentena de quem nega a pandemia, de quem sai pela cidade buzinando em frente a hospitais pedindo o fim do isolamento. Se existe um inferno, é esse. Pode apostar.
Pandemia, lição número 1: a desigualdade
Se tem algo que o coronavírus está exaltando é a desigualdade. Aliás, ele depende muito dela para se reproduzir: a favela é como um oásis para ele. Lá, ele se espalha sem barreiras, sem nenhum obstáculo. Se na China, com regras duríssimas de isolamento ele fez o que fez, imagine o que não faria ao resto do mundo. E fez. País após país, a epidemia começou branda, como esperado, mas rapidamente tivemos uma escalada dos números. Os primeiros países ocidentais negaram a epidemia. Quando não era mais possível negar tentaram controlá-la, com a economia sempre no comando, no topo das prioridades. Quando chegaram as mortes, voltaram atrás. Fecharam. Tomaram medidas. Mas já era tarde demais. Agora culpam a China por sua letargia e total negligência.
“O nascimento desiguala, mas a morte iguala a todos”
Isso aconteceu na Itália, Espanha, França, Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos. Aconteceu também no Brasil, que, junto com os Estados Unidos, são os dois únicos países em que as pessoas saem às ruas pedindo o fim do isolamento. Eram também os únicos países negando a pandemia oficialmente, até que o Trump, talvez a tempo, tenha percebido que a economia precisa também de uma coisa muito importante: pessoas. Quando empilhamos corpos, fica claro o destino da economia.
Em todos os países houve a discussão sobre uma renda universal, sobre como manter quem não tem renda fixa ou perdeu a renda por causa da pandemia. Em todo lugar havia gente vulnerável, morando na rua, sem um emprego formal e renda satisfatória. Todos os governos tiveram que se mobilizar para “tapar” seus buracos. Estados Unidos teve que mudar todo o sistema de saúde e fornecer testes gratuitos, para entender a dimensão da pandemia e poder controlá-la. Em toda parte a desigualdade tem sido um problema, todos tiveram que lidar com suas misérias. Mas nenhum deles tem a desigualdade que temos no Brasil. Nenhum deles tem PIB europeu e africano no mesmo território. Em todas as nações, a desigualdade existe e cada nação lidou com ela a seu modo. Inclusive o Brasil.
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Lição número 2: a importância da política
O que faz a Inglaterra pagar 80% dos salários para os trabalhadores? O que faz de Portugal um exemplo humanitário e efetivo no combate ao coronavírus? Como a China conseguiu parar Wuhan, uma cidade como São Paulo? Como é que, na Alemanha, há leitos suficientes? Na Finlândia, o Estado tem capacidade para acolher 6 mil pessoas durante, pelo menos, uma semana. Escondidos dentro e fora do subterrâneo finlandês, o governo guarda de tudo: suprimentos médicos, comida, ferramentas agrícolas, combustível, material para fabricar munição. O que faz essa diferença entre nós e eles?
A primeira coisa que você vai pensar é: são países mais ricos, com mais dinheiro. Simples. Mas errado. No Brasil, não falta dinheiro. Nossa carga tributária é altíssima, das maiores do mundo. Temos indústria, temos exportação, importação. Somos o celeiro do mundo, temos riquezas minerais e bom clima. A diferença está na arrecadação de impostos e nas políticas fiscais, no quanto esses impostos retornam para nós. É a divisão dessa renda que nos faz pobres. É a circulação concentrada do dinheiro que gera a desigualdade, que coloca lado a lado na Marginal Pinheiros em São Paulo a favela Jardim Panorama e o complexo Cidade Jardim. Cercadas de barracos e pobreza, surgem as torres imponentes do empreendimento que abriga escritórios, apartamentos que chegam a ter 2000 m² e um shopping onde o relógio mais barato sai por 300 mil. Não podemos esquecer que esse belo cenário é cortado pelo rio Pinheiros, um dos rios mais poluídos do Brasil; um verdadeiro esgoto a céu aberto.
O que torna isso tudo possível? Se não é o dinheiro, qual é a diferença entre nós, brasileiros, e países de primeiro mundo? Cultura e política. Uma cultura onde a educação é valorizada a população tende a uma racionalidade maior. É mais difícil manipular a opinião pública, as pessoas conhecem mais os seus direitos, o senso comum é mais humano, o bem-estar geral é mais importante. Temos sim questões históricas que geraram resultados diferentes: fomos colonizados. Mas já poderíamos ter ultrapassado essa barreira, como tantas outras colônias. Mas não fizemos. Continuamos nos servindo da pobreza, explorando o trabalho. Ciência é quase um palavrão. Quem quer estudar, que se esforce, que seja merecedor. No discurso espiritual, que “cocrie” uma nova realidade. Se eu moro no Cidade Jardim em um apartamento de 2000 m², é porque mereci. Essa é a nossa política. E na pandemia fica claro quem deve sair às ruas em nome da economia, e quem pode fazer quarentena em paz. E também fica evidente o porquê.
“O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”
Quem vai pagar a conta?
Essa pergunta faz rir. Na verdade, até causa certa raiva. Bilionários metendo as caras na mídia se dizendo preocupadíssimos com o desemprego, com a economia, falando em favor dos trabalhadores. Dos pobres. O Brasil não pode parar, as pessoas têm que trabalhar, senão vão morrer de fome. E vão mesmo.
Quem tem a mesa farta, não se importa com quem tem a barriga vazia. Há anos convivemos com a miséria no Brasil. Há anos convivemos com a miséria na África. No Brasil, temos favelas, periferias e áreas nobres, metrópoles, e somos a 8 economia do mundo. A África é um continente inteiro, que, com exceção da branca e loira África do Sul, vive em uma pobreza tão extrema que não há palavras para descrever. E nós aceitamos, nós alimentamos esse sistema. E olha que estamos transitando para a luz! Temos tantas mentes acordadas, tantos ativistas quânticos! Nunca fomos tão positivos! Será?
Quando a catedral mais famosa do mundo ardeu no coração de Paris, gente muito rica se sensibilizou. Não demorou para que fossem anunciadas doações em todas as partes do mundo para o processo de reconstrução. De bilionários a pessoas comuns, arrecadamos nos primeiros dez dias após o colapso da agulha principal de Notre Dame quase 1 bilhão de euros. Desse 1 bi, 500 milhões de euros vieram de apenas três famílias. Três pessoas, em questão de minutos, fizeram surgir no mundo 500 milhões de euros. Só três. Na época, uma estimativa inicial de economistas franceses da área de construção sugeriu que as doações iam superar os custos dos reparos da catedral. A catedral de Paris é realmente muito importante para nós…
Agora, com a economia em risco, a pergunta é: quem vai pagar a conta? Quem vai salvar a economia? O dinheiro dos bilionários ou a vida da população comum?
Espiritualidade na prática é a única salvação
Para uma interferência espiritual, precisamos rezar, meditar. Para uma interferência na matéria, precisamos da política. Na pandemia, está bem clara a diferença que faz, em termos de vida, as decisões que um governo toma ou deixa de tomar. Achar quem quer fazer justiça meditando, não entendeu como o mundo funciona.
É agindo que transformamos, é mudando a realidade do mundo que podemos expressar a espiritualidade e o que ela nos ensina. A matrix que vivemos só pode ser transformada através de atitudes materiais. A visão espiritual é fundamental, rezar é importante e meditar é essencial. Mas a favela não deixa de existir porque você meditou, a África não fica um centavo mais rica porque você desbloqueou seu chakra, assim como o coronavírus não vai embora porque você rezou e se manteve positivo.
A pandemia está escancarando a desigualdade social, a importância do bem comum, de ter um teto sobre a cabeça de todos e comida em todas as geladeiras. Ela também mostra que não ter um sistema de saúde digno custa muitas vidas. Novamente, política.
“Os ricos fazem tudo pelos pobres, menos descer de suas costas”
A frase acima diz muito sobre nós, sobre o que estamos passando nesse momento: se tornou mais importante preservar a economia do que salvar vidas. Fazem de tudo pelos vulneráveis, menos dividir com eles parte da riqueza e deixá-los em casa. Novamente, política, economia, classes sociais, capital…
A prática espiritual nos ajuda, mas é a espiritualidade na prática que abre nossos olhos para a realidade e planta em nós a indignação que precisamos para agir. Só a ação transforma.
Se você pode, fique em casa
Ter uma casa já é vantagem no Brasil. Poder ficar nela durante meses, mais ainda. Ficar nela meses e receber salário e continuar trabalhando, é quase um presente divino. Infelizmente, é uma realidade de poucos.
“A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido”
Mais do que nunca, quem usufrui de certos privilégios tem a obrigação de agir por todos, em nome daqueles que não podem. Mais do que isso, é dever dessas pessoas fazer com que os recursos cheguem até quem precisa. Para lutar, especialmente contra uma pandemia, o nossas cabeças devem ter um teto e as barrigas tem que estar cheias. Ficar em casa é um ato de amor, um ato cívico, humano, espiritual, científico. Ele é tudo, menos um exagero. É urgente, não dispensável. O isolamento serve a vida, o isolamento salva vidas. Salva a sua vida. Se você pode, fique em casa. E faça o possível para que todos possam ficar em casa também, até termos um tratamento efetivo ou uma vacina. Para salvar a economia, há dinheiro mais que suficiente no mundo. Já uma vida perdida não volta nunca mais. Fique em casa.
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